A frase do título foi extraída da
composição “O bêbado e o equilibrista”,
de Adir Blanc e João Bosco, música imortalizada na voz de Elis Regina. Quantas dores
merecem essa designação de “pungente”! Algumas se fecham na angústia única e
íntima de determinada pessoa. Outras se abatem sobre uma casa, limitando-se ao
ambiente familiar. Outras, ainda, devastam uma região, um povo, uma cultura ou
um país. A epidemia do novo coronavírus, ao contrário, ultrapassa todas as
fronteiras, sem poupar ninguém. Deixa atrás de sua passagem um rastro sinistro
de infectados, mortos e enlutados por todo o planeta. Com razão foi
classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como pandemia. Palavra que
se origina do grego, composta pelo prefixo “pan” + “demos”, respectivamente todo
+ povo. Disso decorre a afirmação da OMS, segundo a qual “pandemia é a
disseminação global de uma doença nova, indicando que um vírus se espalhou por
mais de um continente”.
Resultou que essa “dor assim
pungente”, como um flagelo sem igual e com velocidade sem precedentes, ganhou
uma abrangência tão globalizada quanto a economia, os transportes e as
comunicações. Desde o começo da pandemia, aliás, o itinerário da contaminação
já marcou diferentes epicentros: China, Europa, Estados Unidos, América
Latina... O Brasil identificado, por sua vez, como epicentro deste último
subcontinente. Em variados países, Brasil novamente incluído de forma
irresponsável e catastrófica, não faltaram erros e equívocos nos diagnósticos e
nas políticas de combate diante desse “inimigo invisível e silencioso”, por
isso mesmo mais letal. Os próprios cientistas e pesquisadores, de modo especial
os infectologistas passaram a buscar desesperadamente correr contra o tempo:
num primeiro momento tentando entender o comportamento do que veio a ser
chamado de Covid-19, depois utilizando todos os avanços da ciência e da
tecnologia para a descoberta rápida de uma vacina. Contam-se às dezenas as que
hoje estão em curso acelerado de pesquisa e produção.
Resta olhar para a segunda parte
da frase tomada de empréstimo à canção de Elis Regina. Em outras palavras, de
que maneira essa “dor assim pungente não há de ser inutilmente”? Além de seus
efeitos perversos e consequências devastadoras, que pode ela nos trazer como
aprendizado? Após meses de um convívio desgraçadamente miúdo e próximo,
familiar e cotidiano com o coronavírus, é possível sim tirar dessa experiência
dolorosa elementos místicos e espirituais que nos ajudam a enfrentar as adversidades
e fortalecer nossa imunidade emocional e psicológica. Talvez o mais
significativo seja a oportunidade de reencontro consigo mesmo, com o outro e
com as dúvidas e perguntas relacionadas ao sentido da vida – coisas que nos
levam à questão fundamental sobre Deus e sua presença entre nós.
O isolamento físico provocado
pela quarentena por aqui, convenhamos, contou com o “jeitinho” brasileiro do
drible Mas ele nos interroga profundamente sobre nosso modo de viver, de se
relacionar, de ocupar o tempo, de consumir, e assim por diante. Muitos bens e
urgências antes consideradas de primeira necessidade passaram a ser
relativizados. Impulsos imediatos, desejos e instintos, de um lado,
necessidades básicas e reais, de outro, sofreram inevitavelmente um processo de
redimensionamento e ressignificação. Na medida em que as desigualdades sociais
e econômicas, combinadas com as injustiças estruturais, foram viradas do avesso,
os “migrantes, os excluídos, os invisíveis e os descartáveis” – termos com que
o Papa Francisco chama a atenção sobre tantos trabalhadores do mercado informal
– ganharam nova visibilidade.
De forma implícita ou explícita
uma inquietude, também ela “pungente”, se instalou em nosso coração, ao mesmo
tempo que uma reflexão profunda, inusitada e silenciosa tomava conta de nossa
mente, de nossa alma e de nosso espírito. E trouxe uma redescoberta: sim, este
tempo de sofrimento não foi em vão, não padecemos “inutilmente”. É possível
hoje pensar num modo de vida alternativo: sóbrio, frugal, justo, fraterno,
solidário, responsável e sustentável.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs,
vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 17 de agosto de 2020
Nenhum comentário:
Postar um comentário