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terça-feira, 28 de abril de 2020

ELAS ESTAVAM DE PÉ JUNTO À CRUZ


Pequeno grupo de mulheres estava de pé junto à cruz. De acordo com os relatos evangélicos, além de Maria, a mãe do Crucificado, outras Marias a acompanhavam nesse momento de dor e morte, solidão e abandono. No atual contexto sombrio e letal da pandemia do Covid-19, uma imensa multidão de médicos, enfermeiros/as, técnicos e agentes da área da saúde encontram-se de pé junto à cruz dolorosa de tantas pessoas e de tantas famílias. Com o risco constante de contágio, e apesar do receio pela própria vida e pela dos seus, atuam da linha de frente do combate. Tratam de otimizar o diagnóstico e a medicina adequada, cuidar dos enfermos, acolher o último suspiro dos moribundos e consolar seus familiares, parentes e amigos. Junto aos leitos, nos corredores e nas salas de terapia intensiva dos hospitais, travam essa guerra sem tréguas contra o inimigo invisível e, por isso mesmo, tanto mais forte, contagioso e ameaçador.
Nos bastidores, em sofisticados laboratórios, com tecnologia de ponta e estudos avançados, equipes de cientistas abraçam a mesma causa, correndo contra o coronavírus e o tempo, na desesperada busca de um remédio ou vacina. Numeroso é também o número de voluntários que, através das mais distintas iniciativas, tentam suprir as lacunas das famílias mais necessitados, ou as carências dos sistemas de saúde em perigo de colapso. Tanto nas trincheiras de vanguarda, quanto nas pesquisas de retaguarda, ou ainda correndo por mares bravios e “nunca dantes navegados” (Camões), um exército de soldados anônimos se mantém de pé, junto à cruz, em luta com as únicas armas que possuem: a medicina, a dedicação e a solidariedade.
Voltando às mulheres que, fiéis até o fim, permaneceram de pé junto à cruz do Crucificado, e ainda conforme os relatos evangélicos, serão elas as mesmas que, três dias depois, haverão de espalhar a espantosa notícia sobre o túmulo vazio e a presença do Ressuscitado. Aquelas que mais de perto e com maior coragem assistiram à paixão, ao sofrimento e à morte do Mestre, serão posteriormente as primeiras a espalhar a mensagem da Ressurreição. Quem tocou com os dedos e com as mãos o corpo de Jesus, preparando-o e perfumando-o para a sepultura, verá depois, em primeira mão, a luminosidade resplandecente do Cristo vivo. Quanto mais próximas à terra e ao chão ensanguentado da cruz, mais prontamente deparar-se-ão com o grande mistério d’Aquele que venceu as trevas e a morte, trazendo a Boa Nova da luz e da vida.  Na fidelidade da cruz já se vislumbram os sinais da Páscoa.
O mesmo haverá de ocorrer com esta tragédia do Covid-19. Aqueles que mais de perto estão acompanhando os doentes, os mortos e seus respectivos familiares, serão os mesmos que, cedo ou tarde – e tomara que seja o quanto antes – haverão de anunciar a Boa Nova da vitória sobre a pandemia. Não será em vão o esforço conjunto e combinado dos agentes sanitários, no sentido de reunir tantas energias para evitar um mal maior. Tampouco será em vão o empenho comum dos cientistas e autoridades na descoberta de novas armas contra esse inimigo, simultaneamente tão minúsculo e tão poderoso. E não será em vão, da mesma forma, as centenas e milhares de gestos solidários que se propagam pelo mundo afora.
Experimentos se repetem, lições se multiplicam, enriquecendo-se reciprocamente. Com elas, instala-se um processo unificado para combater a morte e salvar a vida. Descobre-se que, direta ou indiretamente, a pandemia tem a ver com a forma de relação entre ser humano e natureza. Resulta evidente que a retomada da produção a ritmos hiperacelerados e o consumo frenético devem ser revistos. Os recursos do planeta Terra não são inesgotáveis. Qual o desafio para a humanidade? Aprender a cuidar da “nossa casa comum”, através de um desenvolvimento social e ecologicamente sustentável. Além disso, redimensionar a economia globalizada que, ao concentrar simultaneamente riqueza e exclusão social, torna injusta e desigual a distribuição da renda. Somente assim, os que hoje estão em contato direto com a doença e a morte poderão amanhã anunciar a Boa Nova de que a vida haverá de ser recriada!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de janeiro, 15 de março de 2020

segunda-feira, 13 de abril de 2020

JANELAS ABERTAS PARA O FUTURO


Com temor e tremor, lenta e dolorosamente, o mundo atravessa o túnel escuro da pandemia do Covid-19. E, em consequência, segue a quarentena do isolamento social. Neste período de crise, dor e morte, onde predomina a angústia e a incerteza, a impotência e a ansiedade, duas janelas se abrem de forma inusitada para a relação com o mundo e com as outras pessoas. A bem da verdade, ambas as janelas já se encontravam abertas, mas agora substituem a porta como ponte com a rua e os demais seres vivos, até mesmo os familiares, parentes e amigos mais próximos. Por elas, passa hoje o fio invisível que une nossos laços humanos.
A primeira janela, literalmente falando, é aquela de nossas casas e de nossos quartos, para quem pode gozar o luxo de um quarto individual. Algumas dispõem até mesmo de uma pequena varanda como continuação da sala. Em outros tipos de moradia, nos bairros mais pobres e precários, pelas periferias e favelas, a janela praticamente está colada com a do vizinho. Dessas janelas, hoje mais escancaradas do que nunca, emanam sabores e saberes, sons e cores, que antes pareciam represados. Os gestos, a música e a conversa ganham novo significado. O risco de sair à rua e às praças, e de escutar o rumor ensurdecedor da cidade, confere maior relevo às palavras que trocamos através da janela. O perigo do contágio no “lado de fora” aumenta a intimidade no “lado de dentro”, bem como a necessidade de comunicar essa riqueza de novas experiências, novos sentimentos e novas emoções.
A segunda janela é virtual e rima com tela: de televisão, de computador, de smartfone ou celular. O uso das redes sociais, em especial, se intensifica, ao ponto de sobrecarregar e saturar os sistemas da Internet. Mensagens e imagens familiares e amigas, moralmente sérias, sadias, solidárias e construtivas, navegam na contramão do que se convencionou chamar de “fake news”, ou informações erradas. Diferentemente dos meios de comunicação ditos “oficiais”, pela Internet é mais fácil veicular polêmicas e ataques, confrontos e agressões, insultos e mentiras. Quando o encontro não conta com o face-a-face ou o olho-no-olho, frequentemente deixamos de lado o diálogo e caímos no monólogo, onde o ódio tem a primazia. Nesta quarentena felizmente, e mesmo no mundo virtual, temos visto a cultura da paz e da convivência se sobrepor à cultura do ódio. A dimensão negativa que marca tão fortemente a comunicação pelas redes virtuais, dá lugar a uma dimensão positiva que faz nascer novas aberturas nas relações humanas.
Ambas as janelas – aquela propriamente dita e a virtual da telinha – pavimentam alternativas inéditas para as relações futuras, sejam estas interpessoais e familiares, comunitárias e sociais, políticas e culturais. Novas perspectivas se descortinam no horizonte, como se o túnel sombrio desta pandemia nos obrigasse a acender pequenas velas para iluminar o caminho a escolher. Afinal, tanto mais escura é a noite, tanto maior será o brilho das estrelas. De forma consciente ou inconscientemente, a quarentena nos ensina a depurar o relacionamento, a purificar a cultura e seus valores, e a escutar outras vozes que antes deixávamos de escanteio.
Desenha-se uma convivência social onde a experiência de cada um, os sentimentos e emoções encontram maior espaço na sociedade humana. Os bens imateriais da amizade, da relação e da solidariedade, por exemplo, tendem a superar os bens materiais que por tanto tempo nos têm escravizado. O confinamento nos leva ao retiro, ao deserto, ao silêncio e à escuta – e tudo isso, por sua vez, nos conduz a importantes escolhas. Aprendemos a distinguir aquilo que é supérfluo daquilo que é essencial. O que é secundário do que é absolutamente inegociável. Em outras palavras: que valores temos cultivado no jardim de nossa casa e de nossa vida? Que valores queremos cultivar depois de passar por esta noite tenebrosa? Diz o ditado popular: “quem semeia vento, colhe tempestade”! As janelas supracitadas ajudam a transfigurar o nosso olhar tanto sobre nós mesmos e sobre as coisas e as pessoas, quanto sobre a vida, a natureza e o universo como um todo. Muita coisa podemos superar em vista de um mundo melhor!
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 13 de março de 2020

quarta-feira, 8 de abril de 2020

PLANETA TERRA VAI AO MÉDICO


- Doutor, acho que peguei uma dessas gripezinhas chatas que não querem sarar.
- Não, cara Terra, sua febre está muito alta, e isso causa preocupação.
- Será que peguei algo mais grave? Todos os sintomas são de gripe.
- Sim, os sintomas são os mesmos, mas podem enganar. Precisamos fazer alguns exames
  técnicos e mais apurados; enquanto isso, vou receitar qualquer analgésico para a dor...
- Então, Doutor, estou ansiosa pelos resultados. O que revelaram os exames? Nestes dias
  senti que aumentaram as dificuldades de renovar o oxigênio da atmosfera.
- Infelizmente, nada de bom! A análise revelou a presença em seu corpo de um vírus novo,
  absolutamente desconhecido. E o que é pior, altamente contagioso. Ele ataca os pulmões
  que devem purificar o ar e pode comprometer todo o ecossistema da vida.
- E qual o remédio para esse estranho hóspede? Espero que tenha cura.
- Lamento, mas não há um remédio específico. Você vai ter que parar de girar
  e passar algum tempo em quarentena, quem sabe isso ajudará a sentir-se melhor...
- Que bom revê-lo, Doutor, acho que já me sinto melhor. Posso voltar à minha órbita diária.
- Ainda não. A situação é mais grave do que parecia no início. O vírus já começou a se espalhar
  por todo seu corpo. Milhares de células estão sendo contaminadas, e centenas já morreram.
- Morte? Meu Deus, a coisa é tão séria assim! Será que tenho anticorpos contra esse vírus?
- As notícias são sombrias. O contágio se alastra por seus órgãos e seus membros.
- Santo Deus, que cruel! Como pode esse vírus, que nem se vê, fazer tanto estrago?
- Por isso mesmo! Além de ser invisível, ele se esconde em células assintomáticas
  e, desse jeito, circula livremente por todo seu organismo, ceifando célula após célula...
- Doutor, a epidemia virou pandemia. A morte avança por todo meu corpo. Mais trágico do que eu
  poderia imaginar. Nunca se viu uma coisa igual. Parece que se combate uma nova guerra mundial.
- Guerra mundial, essa é a palavra. O potencial do inimigo, sempre invisível, só faz crescer.
- Mas, afinal, de onde apareceu esse vírus? De onde vem sua força tão contagiosa e tão letal?
- Olha, cara Terra, aqui eu vou deixar de lado a minha especialidade médica. Tenho a impressão
  que seu corpo anda meio fragilizado. O sistema de produção capitalista tem como motor o lucro
  e a acumulação de capital. Daí a devastação de tuas matas originais, a contaminação da atmosfera,
  bem como a poluição de teus rios, lagos e mares. Uma tragédia anunciada.
- Verdade, Doutor, sinto-me fraca, cansada e ainda com febre. Febre que se revela na deterioração
  dos diversos ecossistemas e num vaivém sem igual das células por todo corpo; outras estão inativas
  pela desocupação e muitas, milhões, estão enfraquecidas pela pobreza, a miséria e a fome....
- Como está hoje, Sra. Terra? Sua febre segue nas alturas, o que está acontecendo?
- Sigo doente e à beira da UTI. Nesta crise, onde vírus e crise econômica se misturam,
  as células se agitam sobre meu corpo. Provocam tensões, conflitos, turbulências e guerras.
  A violência tem redobrado. As células mais fortes oprimem e exploram as mais fracas.
  O resultado é que concentração de renda e exclusão social andam de mãos dadas.
  A desigualdade social cresce de forma exponencial, exorbitante, estridente.
  “Ricos cada vez mais ricos às custas de pobres cada vez mais pobres”, dizem ...
- Olha, cara Terra, sou especialista em infectologia. Pouco entendo de sociologia e economia.
  Mas me arrisco em dizer que a febre de seu corpo tem muito a ver com uma reação do
  organismo aos ataques devastadores que você tem sofrido ao longo da história humana.
- Verdade! Além da fraqueza física e sistêmica, sinto-me emocional e psiquicamente abalada.
  As células de meu corpo, em vez de me proteger como fonte de vida, agem como sanguessugas.
  Chupam todo meu sangue: minerais, vegetais, animais, ar, sol, águas e outras riquezas.
  O meio ambiente se ressente e reage. Por isso dizem que a natureza não perdoa!
- Tem razão, dá para entender a insistência do Papa sobre o “cuidado com nossa casa comum”.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 8 de abril de 2020

sábado, 4 de abril de 2020

FRAGMENTOS DE ESPIRITUALIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA (IV)


O tempo litúrgico da quaresma dá lugar à Semana Santa. Celebra-se a passagem da escravidão para a liberdade, das trevas para a luz, da morte para a vida. Mas a pandemia Covid-19 ainda paira como uma nuvem de chumbo sobre boa parte do planeta. O furor letal do vírus varre vilas, cidades e países inteiros. Fantasmas sinistros e invisíveis parecem habitar as ruas e praças desertas, ao passo que os vivos, em quarentena compulsória, se acotovelam como prisioneiros em suas próprias casas. As autoridades sanitárias alertam para o colapso iminente da rede hospitalar e seus equipamentos indispensáveis. O combate envolve todo o exército disponível de médicos, enfermeiras, assistentes e outros. Não poucos desses profissionais da saúde, também eles contaminados, têm que abandonar a frente de combate.
Na esteira da pandemia, os índices econômicos sofrem pesadas baixas. E o sofrimento recai primeiramente, e com maior gravidade, sobre os extratos mais vulnerabilizados da população. No rastro macabro da pandemia vai se multiplicando, às dezenas e centenas de milhares, o número de infectados e mortos. Separações inesperadas se abatem sobre as famílias. A dor dilacera e elas choram seus entes queridos, em muitos casos não contando sequer com o consolo de acompanhá-los até o cemitério. Nesse quadro desolador, somos convidados a celebrar a Semana Santa com três olhares marcados pela fé e pela esperança: a) um olhar para a cruz; b) um olhar para o sepultamento; e c) um olhar para o túmulo vazio.
Um olhar para a cruz. Olhar a cruz é contemplar a face desfigurada do Crucificado. Nela se reflete a luminosidade do amor em seu grau mais elevado. Contra a violência humana mais cruel e gratuita, contrapõe-se a também gratuita e suprema bondade divina. Momento único e colossal na história da humanidade. Aos açoites, às calúnias, às difamações, ao abandono, aos pregos e à dor atroz da morte em cruz – reservada aos piores criminosos – Jesus responde com o perdão e ainda procura justificá-lo pela ignorância a agressividade dos torturadores: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”. Encontro sem igual, sublime e sem paralelo. A graça vence o pecado, no processo da vitória da vida sobre a morte.
A vingança do homem-Deus, no mais vil e dolorido dos sofrimentos, é o perdão para seus algozes! Na cruz, verifica-se o mais extraordinário contraste: o encontro/desencontro tremendo e incomparável entre a extrema maldade dos seres humanos, de um lado e, de outro, a infinita misericórdia do Pai. Semelhante contraste do encontro/desencontro reflete tamanha grandeza e profundidade que, a exemplo do choque elétrico de negativo com positivo, uma faísca brilha de forma, ao mesmo tempo, silenciosa e estridente. Acende-se uma luz nova e intensa. Seu brilho rasga o céu como um relâmpago e ilumina para sempre toda a face da terra. Fugaz como o raio e simultaneamente fecundo com a chuva sobre a terra ressequida. Gesto inusitado e luminoso que antecipa e anuncia a glória da ressurreição.
Mas olhar a cruz é também contemplar, junto com o Crucificado, a face igualmente desfigurada dos crucificados pela pandemia Covid-19. São hoje centenas de milhares, milhões se levarmos em conta a dor dos familiares, parentes e amigos. Dor que varre a terra como a sombra do vírus, atingido pessoas, lares e relações. A face desfigurada dos crucificados amplia-se quando os dados, os fatos e as pesquisas indicam os que se encontram mais vulnerabilizados, tendo sua vida mais ameaçada. Os números sinistros alertam sobretudo para os “soldados do grande exército” representado por todos os profissionais do sistema de saúde. Medo, pânico e terror se espalham com a velocidade do contágio. A incerteza do fim do túnel aumenta a ansiedade.
Olhar a cruz, a face do Crucificado e o rosto de todos os crucificados – com os olhos da fé e da esperança – é dar-se conta que, por mais paradoxal que possa parecer, a mesma luz que se acendeu no alto da cruz ilumina o rastro devastador da pandemia. A crise e o sofrimento, na história pessoal ou coletiva, por mais que sejam mensageiros de tragédias, ajudam a depurar, a purificar, a tornar mais sóbrios e essenciais os valores culturais e humanos. Nossas atitudes nos momentos de cruz, nas situações-limites da vida, podem iluminar o processo de superação da morte. Neste sentido, não seria exagero afirmar que o momento crucial da revelação salvífica está muito mais no alto da cruz do que na própria ressurreição. A clamorosa luminosidade que se revela a partir do encontro/desencontro entre a violência humana e o perdão divino tornar-se-á um farol para toda a trajetória do cristianismo. Tanto maior é o sofrimento de hoje, tanto mais sólida será a esperança num amanhã recriado.
Olhar o sepultamento. Jesus é retirado da cruz e sepultado. Principais protagonistas aqui são um grupo de mulheres, junto com José de Arimateia. Por que o extremo cuidado das mulheres com o corpo do falecido? Por que o cuidado dos familiares, amigos e parentes com o corpo dos falecidos pela pandemia, apesar das restrições para velórios e funerais? A resposta é a superação pela fé e pelo amor. Aquela faísca da cruz, a luminosidade fantástica daquele relâmpago é como uma semente. A superação da violência com o gesto de perdão constitui uma luz tão viva que não pode morrer. Da mesma forma, a relação dos que ficaram com os que partiram, vitimados pelo coronavírus, contém tanta intimidade e tantos segredos que não pode morrer. Em ambos os casos, os corpos que descem à sepultura de forma tão trágica são como sementes que haverão de brotar. Essa é a intuição das mulheres ao sepultarem o corpo do Mestre. Usam óleos caros, panos de linho puro e todo o cuidado porque esse corpo não pode permanecer nas profundezas da terra. Desce ao abismo dos infernos para subir aos céus. A exemplo de toda semente, busca a terra úmida, escura e fria, para depois erguer-se ao azul do firmamento. Cresce para baixo no sentido de, com vigor redobrado, crescer para o ar livre. E produzir tronco, ramos, folhas, flores e frutos. É como se, pela luz do madeiro, Jesus tivesse ressuscitado antes mesmo de morrer!
Também neste caso, não seria exagero afirmar que o corpo do homem de Nazaré não será propriamente sepultado, mas semeado. Deve levantar-se do chão com o potencial invisível de toda semente. Como a flor, a espiga e o edifício – sua memória viva tem raízes no chão, mas tem simultaneamente tem as asas da brisa suave e confortadora. Somente assim os ventos da violência e da fúria histórica nada poderão contra sua obra de salvação. Em outras palavras, e agora concentrando-nos estragos desoladores da pandemia, tanta morte e tanto sofrimento sobre a face da terra, não podem ser em vão. Navegar com a bússola da fé e da esperança, apesar da fragilidade de nossa embarcação comum, e num momento que nos dilacera a todos, é a melhor forma de manter viva e ativa a utopia do Reino.
Olhar o túmulo vazio. Na madrugada do terceiro dia, dizem os quatro relatos evangélicos, vozes estranhas começaram a circular. Primeiro de algumas mulheres, depois de alguns apóstolos, e por fim do grupo de apóstolos como um todo. A novidade é inusitada: o túmulo está vazio! Terão os soldados escondido o corpo de seus seguidores? Ou alguém o terá roubado? Por que o teriam levado? Ele próprio, o Crucificado-Ressuscitado, ainda segundo os mesmos relatos, acaba aparecendo aos seus amigos mais íntimos – no caminho, à beira mar, no lugar onde estavam fechados por medo das autoridades.
Então as pequenas luzes de sua pregação, juntamente com a sublime e espantosa luz do ato da crucifixão e morte começaram a brilhar retrospectivamente. Iluminam suas mentes, aquecem seus corações e conferem novo significado às suas almas atormentadas. Palavras, gestos, fatos, milagres, encontros, parábolas e discursos do homem de Nazaré – antes obscuros, envoltos em névoa e misteriosos – passam a ganhar um novo e mais profundo sentido. Os seguidores tratam de ressegnificar tudo aquilo que Ele tinha feito e ensinado. E passam também a reunir-se em pequenos grupos, nas casas dos primeiros convertidos, para relembrar sua memória do Mestre e nutrir-se de sua presença viva e eucarística.
Nascem as primeiras comunidades cristãs. Os discípulos se convertem em missionários (para usar a terminologia do Doc. De Aparecida). Surgem as cartas neo-testamentárias, além dos Atos dos Apóstolos e do Apocalipse. A teologia, a eclesiologia e a evangelização ganham terreno e a Igreja mantém-se firme com os pés no chão e “os olhos fixos em Jesus”
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, 4 de abril de 2020