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terça-feira, 31 de março de 2020

FRAGMENTOS DE ESPIRITUALIDADE EM TEMPOS DE PANDEMIA (III)


O espectro do Covid-19 abateu-se sobre o planeta da economia globalizada, o que explica a denominação de pandemia. A sociedade do espetáculo (Guy Debord) e do hiperconsumo. Essas características, combinadas, acabam por engendrar um individualismo exacerbado. Daí o paradoxo da modernidade tardia ou pós-modernidade: Ao mesmo tempo que os meios de comunicação, em especial o universo virtual da Internet, unem o mundo inteiro, também nos isolam uns dos outros. Criam, simultaneamente, as multidões metropolitanas e a solidão do apartamento. Erguem-se muros em lugar de pontes.
Nesse contexto de aglomeração e anonimato, chega o coronavírus como hóspede indesejado. E este inesperado “inimigo comum”, se por um lado leva as autoridades sanitárias e sensatas a determinar o distanciamento social, por outro, de alguma forma aproxima as pessoas que se mantêm afastadas. Outro paradoxo: o distanciamento forçado nutre o desejo de encontrar-se. Sentindo-nos passageiros de um mesmo barco, nasce, cresce e desenvolve-se um sentimento de simpatia e solidariedade. É nesta atmosfera que: a) somos todos convidados ao deserto, b) o deserto conduz ao outro/diferente, e c) o outro/estrangeiro reconduz ao Pai comum.
Somos todos convidados ao deserto. O binômio quaresma e quarentena define bem o conceito material e espiritual de deserto. Estéril e vazio, esse último quase que nos obriga a uma certa interiorização. A ausência total de vida ao redor, nos convida a debruçar-nos sobre a própria existência. Surge então uma encruzilhada, o horizonte se bifurca em duas direções opostas e contraditórias. Por uma parte, o recolhimento compulsório e a solidão podem cristalizar ainda mais o individualismo da sociedade em que vivemos. Somos levados a uma recusa total de comunicação. Refugiamo-nos como bichos no fundo incomunicável de nosso ego. Resulta então que isolamento e deserto tornam-se despovoados, chegando ao ponto da agressão e hostilidade. Não havendo espetáculo, eu me retiro à caverna.
Por outra parte, o mesmo recolhimento compulsório e a mesma solidão podem levar a uma grande descoberta, ou redescoberta: o tesouro das recordações que carregamos desde a infância. Modifica-se completamente o sentido deste tempo de quaresma e quarentena. Neste caso, o deserto torna-se povoado pelas lembranças que o passado nos fornece. Com tais pérolas nas mãos, o confinamento converte-se em um tempo privilegiado para ressegnificar acontecimentos e experiências já vividas. Solidão, silêncio e deserto conferem luz nova aos fatos negativos, exorcizando, através da meditação, as sombras que pesam sobre eles. E, ao mesmo tempo, torna mais relevantes os fatos positivos que, na noite, a exemplo das estrelas, brilham com mais força. Embora trágica e letal para muitos, a pandemia poder representar um tempo kairológico para rever o passado e reorientar os projetos e passos do futuro. Aqui tanto mais árido é o deserto, tanto mais poderá ser fecundo.
O deserto nos conduz ao outro/diferente. No exercício reflexivo de redescobrir o próprio passado e ressegnificar o sentido da travessia já feita, naturalmente seremos conduzidos a uma outra descoberta: o outro também carrega consigo um tesouro. Também tem um passado cheio de aventuras, fracassos, adversidades e sucessos. Outro que pode ser alguém da família que convive sob o mesmo teto, alguém que trabalha comigo, alguém que mora nas vizinhanças ou alguém que faz parte da mesma categoria ou comunidade. Outro de quem, pelos mais diversos motivos ou circunstâncias, talvez eu esteja distanciado, ou há tempo venha evitando cruzar com ele, e mais ainda venha evitando trocar com ele um olhar, uma palavra, um gesto. Outro que na rotina diária acabou se tornando um estranho.
Ao tomar consciência das pérolas de meu tesouro pessoal, tendo a me surpreender com o tesouro do outro e dos outros. Por isso, consequentemente, ao ressegnificar as “alegrias e esperanças, as tristezas e angústias” (Gaudium et Spes) de minha própria história, tendo igualmente a ressegnificar a trajetória também acidentada do outro. Semelhante sentimento se fortalece pelo fato de sabermos que estamos todos no mesmo barco infectado pelo vírus. Na tempestade da pandemia, a embarcação se tornou mais frágil sobre as ondas agitadas. E os passageiros, sobre ela, se sentem impotentes e aflitos. Hora de estender as mãos, estreitar os braços, mesmo que seja à distância. Com isso, a parada obrigatória e sua coincidência com o tempo da quaresma, com maior facilidade nos torna propensos à simpatia, desencadeando ações fraternas e solidárias. Uma vez mais, e paradoxalmente, o afastamento nos avizinha.
O deserto se torna, assim, um terreno fértil e fecundo para o que o filósofo alemão G. Gadamer chama de “fusão de horizontes”. Se, de um lado, as histórias pessoais contêm pérolas a serem redescobertas e ressegnificadas, de outro, o presente nos oprime com um “inimigo comum” e desconhecido. Que fazer? Como orientar a rota do barco a um porto seguro? Que farol poderá nos guiar? Que bússola seguir. Nesse momento difícil, e muito mais trágico para os pobres, os excluídos e os migrantes, o encontro consigo mesmo e com o outro tende a conjugar esperanças, atividades e utopias. Em lugar de prevalecer a “minha bússola” – os princípios individualistas de cada um – deve prevalecer a “nossa bússola” – os princípios a serem debatidos de forma democrática pelos diferentes protagonistas da sociedade. O princípio máximo é que a vida deve estar em primeiro lugar, ou aqueles onde a vida se encontra mais ameaçada.
O outro ou estrangeiro nos reconduz ao Pai. Chegamos aqui a um dos apelos mais insistentes do Papa Francisco: superar a globalização da indiferença pela cultura da acolhida, do encontro, do diálogo e da solidariedade. Já muitas vozes se unem para dizer que sairemos diferentes desta pandemia. Outras vozes mais otimistas dizem que sairemos melhores. De fato, na vida pessoal ou familiar, comunitária ou social, política ou cultural, as adversidades costumam nos imunizar contra o vírus da inveja e do ciúme, da agressividade e da vingança, da violência e do ódio. Ao tomarmos consciência de que ninguém está acima da ameaça que hoje pesa sobre a humanidade, de que se torna necessário unir os esforços para combatê-la e de que o isolamento temporário deve tornar-nos mais forte e solidários – mais do que nunca nos damos conta de que todos e todas somos irmãos e irmãs.
Como irmãos e irmãs, redescobrimos que somos filhos e filhas do mesmo Pai. Mais ainda: sob o chapéu protetor desta fé e desta esperança, podemos incluir todos os povos e nações, todos os credos e bandeiras, todas as culturas e valores. Aqui não há estrangeiros, estamos todos no mesmo barco e na mesma órbita mundializada. Ainda desta vez, os horizontes de fundem e se abrem ao mesmo tempo. A contribuição solidária dos cientistas e pesquisadores, das autoridades sanitárias, dos profissionais da saúde e de tantas iniciativas populares apontam um novo e mais ambicioso objetivo comum. Ele foi expresso com todas as letras pela Carta Encíclica Laudato Si’, publicada pelo Papa Francisco em maio de 2015: o cuidado com nossa casa comum. O documento, como não poderia deixar de ser, traz intuição e o empenho de múltiplas e variadas entidades, organizações não governamentais, movimentos sociais.
O que está em jogo? A economia globalizada, de orientação liberal, gera ao mesmo tempo a concentração de renda e a exclusão social. Economia que “descarta, exclui e mata”! Daí a progressiva desigualdade socioeconômica, com maior gravidade para os países periféricos e emergentes. No contexto macabro da pandemia, com o binômio quaresma e quarentena, somos convidados a reorientar os rumos da política econômica em seu conjunto e em seus detalhes, local e mundialmente. O grande desafio que se coloca é como retirá-la do piloto automático (“mão invisível”) do lucro e da acumulação de capital e, de forma democrática, tomar nas mãos as rédeas das decisões sobre o que produzir, para quem produzir e como produzir. E nisso privilegiando os extratos da população onde a vida se encontra mais ameaçada. Esse, e não a especulação financeira, deve ser o critério último das prioridades a serem escolhidas.
Por quê? Porque tal orientação político-econômica contraria frontalmente o projeto de salvação que o Pai reservou para seus filhos e filhas. O deserto, o encontro consigo mesmo e com o outro nos devolve ao encontro com a ação salvífica do Criador, e daí à prática solidária.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, 31 de março de 2020

sexta-feira, 27 de março de 2020

Fragmentos de espiritualidade em tempos de pandemia (II)


Os tempos modernos, entre outras coisas, caracterizam-se pela velocidade, pelos ruídos, pelo consumo e pelo descarte fácil. A relação com as coisas e com as pessoas são dominadas pela pressa. As agendas e atividades, não raro, superam o espaço de que a natureza nos dispõe. Os meios de transporte, a Internet e a eletricidade aboliram o tempo e a noite. A prática de alguns supermercados e postos de gasolina – aberto 24h por dia – torna-se uma espécie de metáfora também para as ações dos seres humanos. Estamos permanentemente conectados, submetidos a um bombardeio estridente de notícias, publicidade e apelos. Semelhante correria, como não podia deixar de ser, dispersa e desgasta nossa atenção. A pandemia e a consequente quarentena, em pleno tempo da quaresma impõe a necessidade urgente de a) resgatar o núcleo da existência, b) cultivar a memória e a utopia e c) manter os olhos fixos no foco.
Resgatar o núcleo da existência. Qual o núcleo mais íntimo de cada um de nós? Qual o miolo de nossas preocupações e atividades diárias? Por que a pressa, a ansiedade e a busca? Vale iniciar com uma máxima: quando nos sentimos atropelados pela velocidade dos tempos que correm é sinal de que estamos à procura de nós mesmos. Não nos damos conta que, por vezes, o melhor de cada pessoa encontra-se na sua casa. Quantas pessoas deixam o lar, a família e a vizinhança na tentativa de encontrar o sentido oculto e misterioso de suas vidas! Os livros de Paulo Coelho, entre outros escritos contemporâneos, expressam bem esse enigma. Alguns personagens correm mundos e fundos atrás de uma razão para continuar a existência. Ao final de tantos caminhos tortuosos, de tantos labirintos desconhecidos e de tantos encontros – com frequência acabam por tropeçar no beco sem saída do desencontro.
Qual a conclusão? Depois de múltiplas andanças e adversidades, descobrem que o tesouro que tão desesperadamente buscam fora de casa, no retorno, o encontram juntos aos seus. Mais ou menos com a saga de Dom Quixote, de Miguel de Cervantes. Após a desvairada travessia pelo mundo afora no vão esforço de concertar o que está errado, “o cavaleiro da triste figura”, na vigília da própria morte, descobre que no fundo era “um homem bom”. E ali, nas mãos dos familiares e amigos deposita o que tem de melhor: a bondade. Quantas energias gastamos em idas e vindas sem fim ao redor de nosso núcleo mais sagrado! A reclusão e o retiro desta quarentena forçada, justamente no decorrer do período quaresmal, certamente nos ajuda a partilhar com aqueles que habitam sob o mesmo teto o valor mais secreto de que dispomos, o qual, convém não esquecer, é sempre um dom de Deus no íntimo de nosso ser.
Mas não é só isso! Se, por um lado, o recolhimento pode servir para conhecer melhor a riqueza que trazemos em nossas entranhas, num profundo e progressivo autoconhecimento, de igual modo servirá para um conhecimento das pessoas que mais de perto convivem conosco. Quantas vezes, no corre-corre cotidiano, deixamos os familiares para encontrar os amigos, como se para “sentir-se em casa” fosse necessário deixar a proteção de suas paredes, piso e teto! Ou seja, quantos buscamos fora o que não encontramos dentro! A pandemia associada à quaresma nos oferece a oportunidade de descobrir, ao lado das pérolas que nós mesmos possuímos, o brilho e o calor dos valores que os demais carregam. Este confinamento pode ser “o tempo favorável” para o encontro recíproco com aqueles que, embora no dia-a-dia se esbarrem o tempo todo, jamais se encontram. Somente assim nossas casas deixam de ser meras pensões – onde cada qual entra e sai para comer e dormir – para se converterem em um verdadeiro lar.
Cultivar a memória e a utopia. A trajetória pessoal de cada um, com seus relacionamentos e suas experiências, representa um poço de recordações: nele há muita água que pode ser reaproveitada em tempos difíceis. Aliás, nesse poço individual coexistem água e sede, lições de sabedoria e lacunas de carência. Neste momento de recolhimento, pouca coisa pode entreter tanto quanto rever e reciclar a própria memória. Desta última será possível identificar experiências dolorosas que, apesar de tudo e às vezes contra toda esperança, encontraram solução. Constituem o céu estrelado e luminoso de nosso passado: pequenas luzes que nos ajudaram a vencer túneis de dor, sofrimento e escuridão. Também poderemos identificar, a partir dessas mesmas experiências, os anjos que nos ajudaram a sair do escuro e até do desespero. Retiro é momento de conversar com os anjos e relembrar as estrelas que até agora iluminaram nosso caminho. Temos aí um grande acúmulo de iluminações a serem resgatadas e recicladas, seja no sentido de enfrentar os embates do presente, seja na perspectiva de manter viva a esperança e a utopia do futuro.
Não podemos esquecer, por outro lado, que cada um de nós é, simultaneamente, uma mescla de água e sede. Nem só água, nem só sede; nem água o tempo todo, nem sede o tempo todo. Mas essa mistura alternada de água e sede, de lições aprendidas e de feridas abertas, de doação e carência. No conhecido episódio do encontro entre Jesus e a samaritana, à beira do poço de Jacó, capítulo quarto do Evangelho de João, água e sede se encontram. Melhor, dois tipos de água e dois tipos de sede: água e sede material e água e sede espiritual. Quem no início revela a própria sede, ao final oferece água viva; e quem no início vem buscar água com o balde, no final revela sua sede mais profunda e obtém salvação.
Cabe a pergunta: quem de fato evangeliza, Jesus ou a mulher? Ou não será o poço?! O poço é, na verdade, o lugar do encontro entre o finito e o infinito. É nele que água e sede se fundem numa paz serena e perpétua. Na prática do Mestre, verifica-se várias vezes a mesma estratégia: abrir poços, muitas vezes proibidos como este (pois ela é mulher, samaritana e pecadora), e deixar que o próprio poço oportunize a fusão de água e sede. Disso se conclui que o processo de evangelização tem sempre mão dupla: quem se diz evangelizador, acaba por ser também evangelizado; e quem se considera evangelizado, também se revela evangelizador. O poço/encontro é o lugar da abertura ao outro e do enriquecimento recíproco.
Manter os olhos fixos no foco. Foco se identifica com meta, com horizonte a ser alcançado. Facilmente o foco tende a se perder em meio às tormentas da existência. Fica sempre a lição de que quanto mais escura a noite, tanto maior o brilho das estrelas. De igual modo, embora os tempos sombrios possam nos tornar cegos e surdos, costumam clarear melhor os contornos da meta e dos valores inegociáveis. A pressão das dificuldades exige concentrar-se sobre o que é essencial. Na tempestade, a embarcação se desfaz de tudo que é secundário para salvar o que é indispensável. As nuvens sombrias e as ondas bravias nos obrigam a fixar os olhos no alvo, no foco, na meta, em detrimento do luxo supérfluo.
No meio do redemoinho e da encruzilhada, como mostra Guimarães Rosa em Grande sertão-veredas, surge o convite inesperado para repensar a trajetória e o objetivo a que nos propomos, bem como os meios e os fins a serem alcançados. Nesse momento, e em tais condições, seremos capazes de deixar de lado o que é descartável, para nos ocuparmos unicamente daquilo que é verdadeiro e absoluto. Quem sou, de onde vim, para onde vou, o que posso oferecer, do que necessito, que caminho seguir, com quem partilhar a os passos e os tropeços, para onde vai a história? – eis que emergem com força redobrada as perguntas fundamentais da existência, aquelas que apontam para o significado oculto e misterioso da vida humana.
Somos então catapultados da superfície das águas rasas, em que tranquilamente nos movíamos, para o subterrâneo das correntes profundas. De uma relativa indiferença, para um engajamento cheio de compromisso. No turbilhão dos ventos contrários, não há meio termo, é preciso tomar partido. E nesta altura impõe-se outra máxima: em terreno minado, recomenda-se não correr nem caminhar em linha reta. Toda travessia, efetivamente, tem seus reveses. Por vezes faz-se necessário parar, avaliar, silenciar e escolher qualquer atalho, uma vereda alternativa. Esta quarentena e o isolamento forçados, em meio à preparação para Festas da Páscoa, podem ser vistas com outros olhos, positivamente, como uma oportunidade para rever os valores centrais que nos podem levar ao horizonte fixado e almejado.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 26 de março de 2020

domingo, 22 de março de 2020

Fragmentos de espiritualidade em tempos de pandemia (I)

A história humana, ao longo dos séculos, encontra-se pontilhada de epidemias e pandemias. A peste negra e a gripe espanhola figuram entre as mais conhecidas e letais. O livro A peste de Albert Camus representa um quadro aproximativo de uma cidade golpeada e isolada por esses inimigos invisíveis e, por isso mesmo, mais perigosos e difíceis de combater. Que ensinamentos espirituais podem nos trazer esses períodos dramáticos de isolamento, deserto e quarentena? O que podemos aprender de tais experiências-limite e trágicas? Como dar-se conta que, atrás das nuvens sombrias, o sol segue seu percurso? Três aspectos ganham grande relevância: a) somos todos frágeis e iguais; b) necessitamos uns dos outros e c) estamos todos nas mãos de Deus.
Somos todos frágeis e iguais. Entre os animais, o ser humano, ao nascer, é aquele que apresenta maior grau de fragilidade. De início, demora meses para caminhar com as próprias pernas, para comunicar-se com os demais e para alimentar-se por si só. Somente por ocasião da adolescência e da juventude, começará a adquirir uma certa autonomia em relação aos progenitores e à casa em que veio ao mundo. Para suprir semelhantes carências e lacunas, recebeu do Criador razão, inteligência e imaginação incomuns no conjunto do reino animal. Daí a criação de utensílios, ferramentas e instrumentos que, de certa forma, ampliam seus braços, pernas poder de visão e audição, conferindo-lhe uma superioridade inquestionável.
Paradoxalmente, a própria fragilidade humana conduziu sua trajetória a uma série de inventos, de descobertas e a um conhecimento sem igual. Nascem a ciência, a tecnologia e o progresso, juntamente com uma inédita capacidade de adaptação. Se os demais seres vivos nascem já “prontos, completos” e encontram um ambiente a eles adequado, o ser humano é chamado a superar-se a cada obstáculo, a ser sujeito de seu crescimento e construir um entorno propício ao próprio desenvolvimento. Certo, tal capacidade tem levado, não raro, e continua levando, a um poder e domínio absoluto, avassalador, sobre a natureza e a história, chegando muitas vezes à depredação, à devastação e à sujeição não apenas de outras espécies de animais, mas também de seus próprios semelhantes. É o lado negativo de um saber mal utilizado, ou utilizado para interesses escusos, desfigurado em seus fins.
De qualquer forma, fica a lição de que a fragilidade humana e as carências iniciais constituem um convite à humildade, ao aprendizado e a um desenvolvimento que só termina com a morte. A incompletude humana traz embutida sua criatividade, e esta emerge com força diante das adversidades. Estiagens, inundações, epidemias e outras catástrofes costumam ser terreno fértil para a inteligência, a imaginação e a solidariedade. As potencialidades no ato de unificar-se, superar-se e desenvolver-se permanecem latentes na condição humana. E podem decidir por alternativas inovadoras e insuspeitáveis no curso da história. Certo, novamente aqui, forças semelhantes têm desencadeado fatores perniciosos, tais como tensões e conflitos, opressão e exploração, violência e guerra – mas, como diz a canção, sempre resta a possibilidade de “levantar, sacudir a poeira e dar a volta por cima”.
Necessitamos uns dos outros. Além da humildade, da abertura ao aprendizado e da faculdade de união, a fragilidade tende a aproximar os seres humanos. Nos momentos difíceis, experiências-limite da existência – doença, separação, morte, desemprego, amor não correspondido – cada um de nós pode ajudar os demais a carregarem a sua cruz. Mas a própria cruz, ninguém a pode carregar sozinho. Até mesmo Jesus, como dizem os relatos evangélicos, teve a ajuda de Simão Cirineu para chegar com o lenho ao lugar da execução. Neste caso, cabe uma máxima: quando mais profundamente conhecermos a nós mesmos e às nossas debilidades e fraquezas, mais estaremos abertos à compreensão frente às debilidades e fraquezas dos outros.
Abertos, prontos e disponíveis à solidariedade. Surge então o outro lado das relações humanas: o conhecimento recíproco da fragilidade, na condição humana, leva por uma parte à sair de si mesmo e prontificar-se a ajudar quem tem a vida mais ameaçada; por outra parte, prepara-nos para receber com devida humildade a ajuda do próximo. Quebra-se assim a autossuficiência, a arrogância que habitam tão perto do saber, do poder e do domínio. O autoconhecimento abre o horizonte para um conhecimento mais amplo sobre o ser humano e a sociedade. De fato, quem de nós já não passou por uma experiência-limite? Momento difícil e extremo em que chegamos a dizer no íntimo de nós mesmo: “Senhor, até aqui eu vim, arrastei-me com todas as minhas forças, mas agora não posso mais, carrega-me com teus braços potentes”! Não, Deus não vai carregar ninguém! Mas sua graça é capaz de derreter os corações empedernidos, para que possam deixar de lado o orgulho e buscar ajuda. O Senhor, sem dizer uma palavra, indicará seus anjos que nos carregarão sobre suas asas. E semelhantes anjos, com muita frequência, estão do nosso lado: um familiar, um amigo, um companheiro, um conhecido ou desconhecido – como no caso do Bom Samaritano. O desafio é superar a tolerância pelo cuidado uns com os outros.
Importante nesse caso é falar, gritar, pedir socorro! Muita gente está sempre disposta a socorrer os outros, mas se isola e se cala quando a tempestade bate à própria porta. Um certo orgulho impede de abrir o coração e a alma, na tentativa de buscar socorro. Vale aqui outra máxima: quem fala, grita e pede socorro, tende a salvar-se. A psicologia ensina que o próprio ato de verbalizar o que se sente é já uma forma de afastar os fantasmas que nos perseguem e assustam. Falar sobre as nuvens sombrias que cobrem o céu individual, é uma forma de desvanecê-las e abrir espaço para um raio de sol, um raio por menor que seja. Depois, aqueles que não falam, não gritam e não pedem socorro, tendem a afogar-se no próprio veneno. A dor, seja ela qual for, quando atinge o pico do desespero, torna-se cega, não permite um raciocínio lógico. Daí a necessidade de buscar alguém como referência de compreensão e ajuda.
Estamos todos nas mãos de Deus. Iguais na carência e na fragilidade, aos poucos nos damos conta que necessitamos contar com os demais, estender as mãos e deixar que essas se estendam sobre nós mesmos. Mas tudo ganha um sentido mais profundo quando descobrimos que o Criador, origem do universo, de todos os seres vivos e de todos os seres humanos, ao tornar-se nosso Pai comum, tornou-nos igualmente irmãos e irmãs. É o que rezamos na oração do Pai-nosso, transmitida pelo próprio Jesus. Na primeira parte, o olhar vertical para Deus, seu nome, sua vontade, seu reino; na segunda parte, um olhar horizontal para o próximo, o pão de cada dia, as relações de perdão, os perigos da tentação. Conclui-se que quem reza “Pai-nosso”, não pode rezar “pão meu”. Se o Pai é nosso, o pão também deve sê-lo. E pão aqui, simbolicamente, indica tudo o que o ser humano necessita para manter-se de pé e com a devida dignidade. Ou seja, pão em sentido ampliado é sinônimo de terra, trabalho, teto, salário justo, segurança, educação, saúde direitos respeitados, relações de amizade e solidariedade.
Tudo isso ganha maior relevância quando uma catástrofe se abate sobre a pessoa, a família, um grupo, um povo, uma cidade, um país... E com maior razão quando se abate sobre o mundo inteiro, como é o caso da pandemia do Covid-19. Que significa colocar-se nas mãos de Deus? Significa muita coisa, menos transferir para Ele aquilo que devemos fazer com nossas próprias mãos, nossos meios e nossas forças. Convém deter-se numa terceira máxima: a oração não modifica nossos males e problemas, modifica nossa maneira de encará-los. Em outras palavras, Deus não vai resolver aquilo que compete às autoridades sanitárias, aos governos, às instâncias e organismos internacionais e a todos nós, cada qual na sua esfera.
No silêncio da oração, o Pai vai confortar os ouvidos cheios de vírus e ruídos com palavras silenciosas de luz e paz e serenidade; vai aquecer o coração com a chama invisível de seu amor sempre fiel e presente; vai inundar a alma ressequida com a água viva que vem da fonte de sua infinita misericórdia. Numa palavra, a oração vai fortalecer nosso íntimo com a força da fé e da esperança, armadura que nos torna capazes de seguir adiante na certeza de que o sol brilha apesar das nuvens. “Quando sou fraco é então que sou forte” diz Paulo. Noite e tempestade não duram para sempre e, oo final, tornamo-nos mais próximos, fraternos e solidários.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 22 de março de 2020

sexta-feira, 20 de março de 2020

“Bolsa Família”, pobreza e migração no Brasil e América Latina

Engrossa cada vez mais no Brasil a fila à espera desse benefício. De acordo com as estimativas ao redor de um milhão de famílias aguardam o atendimento. Criado para transferir algumas migalhas da renda nacional para os extratos mais pobres da população – menos de R$ 170,00 por pessoa – o programa “Bolsa Família” passou de governo para governo, o que significa que representa um fator de distribuição de renda, ainda que mínimo. Certo, o programa apresenta uma série brechas, contradições e falta de fiscalização, dando margem a práticas escusas de oportunismo e tráfico de influência. Tanto que a contrapartida das famílias beneficiadas, em especial a freqüência à escola e os cuidados com a saúde, deixa muito a desejar. Porém, substituir um modelo de fiscalização sério e responsável por um bloqueio do programa não parece ser a solução mais adequada. O quadro de torna ainda mais grave no contexto atual de acentuado desemprego e subemprego, do crescimento do trabalho informal e da precariedade das condições reais de trabalho.
A situação das famílias de baixa renda piora ainda mais com a estridente desigualdade social que se verifica na economia globalizada em geral. Na América Latina e no Brasil, em particular, a distância entre os que ocupam o pico da pirâmide socioeconômica e os que habitam a base vem se aprofundado progressivamente com a crise prolongada. Já é conhecido e notório o fato de que, enquanto a renda tende a crescer para a faixa de 1% ou de 10% da população mais rica, diminui em proporção inversa para aqueles que se encontram entre os 80% ou 90% mais pobres. Desnecessário repetir que essa assimetria gritante e escandalosa tem conseqüências danosas para todo o continente e seus respectivos países.
Os resultados são evidentes a olho nu. Basta verificar o aumento das pessoas (e famílias) em situação de rua, com destaque para as grandes cidades, capitais e metrópoles; o fluxo cada vez mais intenso de migrantes e/ou refugiados em busca de novas oportunidades, como as caravanas da América Central em direção à fronteira entre Guatemala e México e entre México e Estados Unidos; os números de profissionais de várias categorias, às vezes com curso superior, dispostos a aceitar os “bicos” de toda sorte; as diversas formas de exploração sexual e/ou trabalhista das crianças, jovens e adolescentes de ambos os sexos; a sobrecarga de trabalho para os poucos “privilegiados” que ainda mantêm um emprego com carteira assinada; a remuneração inferior para o trabalho feminino em iguais condições do masculino...
Sempre tendo em vista o contexto das imensas disparidades sociais que marcam a população de nossos países latino-americanos, convém chamar a atenção para os riscos que rondam os povos indígenas, as comunidades ribeirinhas e quilombolas da região amazônica, como demonstra a Exportação Apostólica pós-sinodal Querida Amazônia, do Papa Francisco. Outro olhar atento volta-se para os imigrantes indocumentados e a população afro-descendente. Não é raro ver seus representantes utilizados em serviços árduos e pesados, “análogos à escravidão”, eufemismo que dissimula os casos de escravidão pura e simples. Aqui o olhar se estende pelas regiões fronteiriças, onde centenas e milhares de migrantes são recrutados temporariamente para as safras agrícolas, outros literalmente se escondem nos porões sórdidos e insalubres da indústria têxtil, ou ainda no chamado trabalho doméstico ou autônomo, uma forma de fazer recair sobre os ombros dos trabalhadores e das trabalhadoras todo o ônus dos encargos sociais. Sacrificar o programa “Bolsa Família”, em lugar de criar mecanismos eficazes de fiscalização, retrata o descaso das autoridades para com a “questão social”, além de agravar o pesadelo de centenas de milhares de famílias brasileiras.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Santos-SP, 19 de fevereiro de 2020

quinta-feira, 19 de março de 2020

SIMPLESMENTE JOSÉ


José é uma das figuras mais silenciosas nas narrativas evangélicas. Ao mesmo tempo, porém, aparece sempre na hora certo e no lugar certo. Quando se trata de proteger a família – mãe e filho – lá está ele. Verdade que conta com os anjos, mensageiros de Deus, que o alertam sobre as maquinações dos “filhos das trevas”. Mas, alertado dos riscos que correm Jesus e Maria, põe-se logo em marcha, seja fugindo para o Egito, seja de lá retornando. Exerce certo protagonismo na infância de Jesus, porém, não há registro de sua presença na vida adulta do profeta itinerante. Pouco ou nada se sabe de seu destino. É lícito supor que também ele estaria ao pé da cruz, na hora trágica da morte de Jesus!...
Tudo indica que se trata de um caráter discreto, até mesmo tímido, homem de poucas palavras e de guardar segredos. Podemos também ver nele um profissional de experiência, o carpinteiro de Nazaré, trabalhador sério e respeitado. Sinais de uma sabedoria inata que, em lugar de ações intempestivas frente aos imprevistos da vida (como a gravidez de Maria, por exemplo), prefere o silêncio, a escuta e a espera. Aqui também temos a intervenção dos mensageiros de Deus, como atores principais, mas é José que toma as providências práticas e necessárias. Os seres alados necessitam dos pés e das mãos de José para garantir a segurança da Sagrada Família.
Não obstante, o humilde carpinteiro permanece como uma espécie de ator de bastidores. Raramente aparece em cena. Hoje diríamos que não parece gostar de holofotes, câmeras e microfones. Como se não se sentisse à vontade no palco, em evidência diante dos espectadores. Menos à vontade ainda no cenário dos acontecimentos que, mais tarde, irão se desenrolar com seu filho adotivo. Se de Jesus se diz que “passou pela vida fazendo bem”, de José teremos poucas notícias. Não faz barulho, como quem caminha de pés descalços, silencioso e oculto.
Os estudiosos da Bíblia, particularmente do Novo Testamento, nos alertam que não podemos olhar para essas narrativas sobre a infância de Jesus como fatos históricos. Constituem antes acomodações pós-pascais ao nascimento do Filho de Deus, isto é, grandioso, misterioso, milagroso. Mas isso não invalida a reflexão sobre a presença simultaneamente discreta e oportuna de José nesses relatos. Fictícias ou não, os autores dessas páginas apresentam a figura do “pai adotivo de Jesus” como alguém com um papel secundário, embora relevante.
Partindo do pano de fundo dos parágrafos anteriores, surpreende o número de pessoas que, no mundo inteiro e ao longo da história, foram batizadas com o nome de José. Desnecessário deter-se em pesquisas para constatar que esse é o nome mais recorrente em praticamente todos os povos e culturas do mundo ocidental. No judaísmo, no cristianismo católico ou protestante e nos movimentos religiosos derivados, José se impõe como nome quase obrigatório de um dos filhos de não poucas famílias. Mesmo entre os que recebem outro nome de pia, muitos tratam de intercalar o José como intermediário entre nome e sobrenome.
A surpresa é ainda maior se nos detemos sobre determinadas manifestações da devoção popular a São José. É sem dúvida uma das mais disseminadas no universo católico. No nordeste brasileiro, por exemplo, o dia do santo, a 19 de março, constitui, ao mesmo tempo, um marco para a carência ou a abundância de chuvas e, consequentemente, um marco para o novo plantio. De acordo com uma crença popular bastante generalizada, se a estiagem se prolongar além do São José, o ano tende a ser pobre em feijão, milho, batata, mandioca, inhame, etc. Chuva no “São José” (19 de março) significa milho no “São João” (24 de junho). Por outro lado, não são poucos os religiosos e os sacerdotes que, respectivamente, fazem sua profissão perpétua, ou se ordenam presbíteros, exatamente nesse mesmo dia.
Como explicar essa dupla homenagem a São José? Implícita ou explicitamente, é fácil identificar-se com o José dos Evangelhos. Na sociedade do espetáculo (Guy Debord) em que vivemos e nos movemos, são poucas as estrelas e incontáveis os planetas. Algumas pessoas se destacam e brilham com luz própria, mas a imensa maioria apenas reflete o brilho dos astros mais eminentes. O culto ao corpo e à celebridade se difunde juntamente com a exacerbação do subjetivismo e do individualismo. Porém, raros são os senhores Fulano, Sicrano ou Beltrano, e mais raras ainda as beldades, princesas. A tirania do prazer ou o império do efêmero (para usar expressões de Jean-Claude Guillebaud e Gilles Lipovetsky), só é possível graças a dezenas, centenas ou milhares de coadjuvantes. Estes são os Josés, inúmeros e desconhecidos, com o sobrenome de Silva, Souza, Santos, Oliveira, Gonçalves, e assim por diante.
No entanto, é preciso estar atento às pérolas ocultas por trás das mãos calejadas, dos rostos impenetráveis e das almas rudes desses Josés. Mais do que apoiar-se no sucesso momentâneo e fugaz, eles seguem com os pés firmes no cotidiano, ainda que cheio de surpresas e adversidades. Mais do que colher as luzes de espetáculos fulgurantes e efêmeros, eles procuram lançar sementes no solo úmido e escuro da terra. Mais do que explodir rojões que sobem e iluminam os céus, mas com a mesma rapidez descem e viram cinzas, eles acreditam que as mudanças se erguem do chão, através de pequenos gestos de solidariedade.
Há, contudo, um segredo ainda mais misterioso, um tesouro escondido, ao qual esses Josés costumam ter acesso imediato. Sabem pela experiência que a felicidade duradoura não está no sucesso, no dinheiro, na conta bancária, nos privilégios, nos títulos, no patrimônio acumulado – mas numa prática diária e silenciosa do bem. Surfar sobre a onda dos sucessos equivale a surfar nas depressões dos fracassos. Uns são direta e alternadamente proporcionais aos outros. Expectativas inflacionadas, tal como os balões de ar, murcham com facilidade e geram frustrações igualmente infladas. Todo domingo de festa, regado a comida, bebida e embriaguez, é seguido de uma segunda-feira de ressaca. Se a cruz aponta para a ressurreição, esta supõe aquela.
Os Josés evitam os saltos de lebre. Preferem o passo lento e firme da tartaruga ou do jumento, nosso irmão, diria o nordestino. Depositam sua confiança não nos pulos em falso, mas num caminhar laborioso, regular e persistente. Sabem como extrair alegrias miúdas de uma palavra, de um olhar, de um gesto, de uma visita, de um sorriso, de um beijo, de um abraço, de um toque... E sabem que é nessas mínimas coisas que reside uma felicidade menos volátil e mais sólida. Aprendem a tirar água de pedras, a colher flores no deserto estéril, a acender uma vela no meio da escuridão. Raramente se deixam levar pela aparência de grandiosidade, desconfiam dos passos largos. Mais ainda: desconfiam da própria energia, colocando-se nas mãos de uma força que desconhecem, mas em que crêem.
Normalmente não sobem muito alto, mas tampouco ficam expostos a quedas bruscas. Mais facilmente descem ao coração da terra e das coisas. Suas palavras costumam ser poucas e parcimoniosas, mas revestidas de uma sabedoria simples e profunda. Os ditos populares, ricos e concentrados, nascem, crescem e cruzam as encruzilhadas do mundo com a persistência dos Josés. São diamantes lapidados com sua experiência oculta e silenciosa. A própria palavra “José”, concentrada e valorizada como moeda preciosa, percorre as famílias, os povos e as culturas.
José não deixa de ser, também, a cara da migração. Esta, de fato, põe em marcha uma grande quantidade de Josés. O próprio “pai adotivo” de Jesus, esposo de Maria, é testemunha disso. Um novo olhar aos Evangelhos basta para dar-se conta de como ele, primeiro, por causa do recenseamento, sobe de Nazaré a Belém, lugar em que se completam os dias de Maria e ela dá á luz um numa manjedoura, “pois não havia lugar para eles”; depois de nascido o menino, empreende a fuga para o Egito, protegendo o recém-nascido da fúria e perseguição de Herodes; dessa terra estrangeira, retorna à própria pátria, quando a tormenta já tinha se acalmado; por fim, ao longo da vida, quantas vezes terá se deslocado por causa desse Filho “rebelde”, o qual insistia que “o seu Reino não era deste mundo”!
Não é essa a trajetória de inúmeros migrantes? De tribulação em tribulação, de fuga em fuga, de sonho em sonho, de busca em busca... Sempre perseguindo o futuro, e este como que sempre lhes escapando entre os dedos. Josés, milhões de pessoas sem terra nem lugar, sem rumo nem pátria... Josés a caminho! Josés que, por sê-lo, vivem inquietos e irrequietos. Rompem obstáculos e fronteiras, abrindo com os ombros curvados os horizontes de um novo amanhã. É nome comum de um povo acostumado à estrada. Não costuma figurar entre as famílias milionárias, nobres e aristocráticas, assentadas solidamente sobre suas fortalezas e suas jazidas de ouro e prata. Josés são pessoas pouco vinculadas a castelos e fazendas, normalmente habitam tendas. Conhecendo de perto a transitoriedade e a provisoriedade dos bens terrenos, podem desenvolver uma ambivalência diante da riqueza: ou se agarram ao pouco que possuem, lutando com unhas e dentes para ter mais, ou amadurecem um despojamento que os torna mais leves e livres. Neste último caso, aprendem a lição de depurar a mala e a alma, para caminhar com um fardo menos carregado de coisas supérfluas.
Por isso, ao contrário daqueles que nascem em berço de ouro e a ele se apegam morbidamente, os Josés, e entre estes os migrantes, tendem a uma maior abertura quanto ao futuro. Estão mais preparados para as surpresas da história. Especialmente em momentos de crise e tormenta, enquanto os que moram em castelos e fortalezas correm a se abrigar no berço dourado e saudoso da infância, os Josés costumam ser impelidos para a fronteira. Os primeiros, com o coração preso aos seus tesouros acumulados, lutam para mantê-los a todo o custo; os segundos, encontram-se mais preparados para enfrentar as pedras e espinhos que a existência apresenta. Tenderão a rasgar veredas novas, a se aventurarem, pois nada têm a perder. Das duas uma: ou são tomados pelo medo e a angústia da miséria já experimentada na carne e na alma, agarrando-se mesquinhamente a qualquer migalha; ou se lançam intrépidos à luta por algo diferente. Neste caso, a coragem lhes é praticamente inata. Mas com muita raridade terão seu nome gravado nos jornais. Em geral não são mártires abatidos a tiro, de nome no calendário, de folha na parede. Vivem, antes, um martírio de gota a gota, passo a passo, miúdo e diário, onde uma travessia dura e teimosa substitui as ações vistosas, sensacionais e espetaculares.



Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS - Roma, Itália, 19 de março de 2018

segunda-feira, 9 de março de 2020

O tempo da quaresma convoca ao deserto

​O tempo litúrgico da quaresma nos convoca ao deserto. Deserto representa sempre um conceito ambíguo, com múltiplos e distintos significados. Por uma parte, refere-se ao um espaço estéril e despovoado, marcado pela ausência de qualquer espécie de vida. Nele, ao longo dos séculos, circulam caravanas de comerciantes, povos nômades e tribais, com um modo de convivência próprio. Nele também, periodicamente, costumam retirar-se místicos e anacoretas, vivenciando experiências pessoais de meditação.
Por outra parte, desde um ponto de vista urbano, o conceito de deserto se confunde com o de multidão, pois esta última por vezes rima com solidão. De fato, as multidões anônimas das grandes metrópoles constituem o que se poderia chamar de deserto povoado – demasiadamente povoado e rumoroso! Nesses centros urbanos respira-se um ritmo frenético, onde ruídos, luzes, objetos e cores acompanham os rios de gente que trafegam pelos becos, ruas e praças. Aqui facilmente os encontros se transformam em desencontros, ao mesmo tempo que o diálogo mais parece um desfile dramático de monólogos desesperados.
Tendo presente esses dois aspectos, que significa a convocação quaresmal ao deserto? Trata-se, antes de tudo, da busca de um encontro pessoal consigo mesmo e com Deus. Espaço povoado ou despovoado, o que importa é o cultivo profundo do silêncio e da escuta. Um e outra podem ocorrer no deserto enquanto terra estéril. Quanto maior a esterilidade do terreno, aliás, mais fecundo tende a ser o encontro. A ausência de outro tipo de vida obriga a olhar para o próprio interior. O aparente vazio serve de espelho: favorece a reflexão sobre as relações complexas que a convivência familiar, comunitária e social tece entre as pessoas, bem como sobre a identidade real de cada ser vivo. O retiro em um lugar despovoado, porém, pode igualmente despertar e revelar os ruídos estridentes que os indivíduos carregam dentro de si mesmos, a sua nudez mais íntima, privando-os de um real e eficaz processo de escuta.
Por outro lado, a pressa ruidosa e o consumismo apelativo do universo urbano, hoje majoritário em todo o planeta, esconde não raro um profundo desejo de paz e harmonia. Desejo que passa pela necessidade de criar momentos significativos para ficar a sós consigo mesmo. Não a solidão, mas o cultivo do tesouro formado pelas lembranças vividas. A conclusão é que, tanto o silêncio cheio de ruídos que pode vir de um lugar deserto quanto o ruído prenhe de silêncio da vida urbana agitada, acabam por entrelaçar-se e confundir-se. Isso torna mais complexa, e ao mesmo tempo mais rica, a convocação quaresmal à conversão. Numa palavra, o verdadeiro terreno do silêncio e da escuta não se define pelos limites geográficos, e sim pela atitude e firmeza de quem procura um “tempo de retiro e contemplação”.
Lugar ermo ou povoado, o mais relevante no caminho quaresmal de preparação à Páscoa é a coragem de confrontar-se com a própria nudez, simultaneamente revestindo-a com a graça de Deus. “Quando sou fraco é então que sou forte”, diz o apóstolo Paulo. A consciência da própria fragilidade e das fraquezas que nos afligem descortina os horizontes em uma estrada dupla de reconciliação e reencontro: em direção à misericórdia de Deus e em direção ao outro. Amplia-se, desse modo, primeiro uma compreensão mais serena da condição humana, segundo uma maior aceitação do diferente. Além disso, e de acordo com a temática da Campanha da Fraternidade/2020, abre-se ainda a perspectiva do cuidado diante do próximo, “caído” à margem da estrada e da vida. Cuidado que se volta igualmente para todo e qualquer ser vivo, como também para a preservação do meio ambiente, no sentido de conservar para as gerações futuras as riquezas de nossa Casa Comum. Se a quaresma convoca e conduz ao deserto, este, por sua vez, prepara e aponta os albores da Páscoa, dos “novos céus e nova terra”, como antecipação terrena do Reino de Deus.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 06 de março de 2020