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terça-feira, 22 de setembro de 2020

GOVERNABILIDADE LÍQUIDA

Certo, a metáfora que utiliza o adjetivo “líquido” para evidenciar a ruptura do contrato social sobre o qual se ergue o edifício dos “tempos modernos” foi cunhada pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman. Este último, efetivamente, intitula uma série de obras de sua autoria com um determinado substantivo (modernidade, medo, tempos...), seguido daquele adjetivo. Dessa maneira, a concepção de “modernidade líquida”, por exemplo, tem a ver com a falta de referências firmes e sólidas que ajudem a orientar os seres humanos, e suas principais formas de organização, no mundo contemporâneo. Disso resulta que, na sociedade atual, tanto as pessoas quanto as instituições estariam navegando num mar tempestuoso, como barcos à deriva, sem bússola e sem rumo do porto e do farol.

Mas também é certo que já em torno da metade do século XX, Ernest Bloch, filósofo alemão de origem judaica, escrevia em sua obra monumental sobre o que se poderia chamar de “continente ou arquipélago” da esperança: “O que é infinitamente pequeno, bem como a grandeza variável estavam completamente abaixo do horizonte da sociedade grega; o capitalismo, entretanto, fluidificou tanto aquilo que até então era considerado sólido e finito, que a quietude passou a ser pensada como movimento infinitamente pequeno e passaram a ser concebidos conceitos de grandeza não estáticos” (Cfr. BLOCH, Ernest, Il principio speranza”, Garzanti Editore, Milano, 1994, pág. 153). E nada menos que um século antes de Bloch, ou seja, há mais de 170 anos, os também filósofos e alemães K. Marx e F. Engels deixavam registrado na obra O manifesto comunista que “todas as relações fixas e congeladas, com seu rastro de preconceitos e opiniões, ancestrais e veneráveis, são varridas. Novas relações ficam obsoletas antes de se solidificarem. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Tudo o que é sagrado é profanado. Todos precisam encarar com serenidade sua posição social e relações recíprocas. ”

As duas citações, quando combinadas e confrontadas, descortinam uma involução cada vez mais acentuada na desconstrução deste edifício chamado modernidade. Se por uma parte, a metáfora de “sociedade líquida” nos é contemporânea, tentando às vezes exprimir uma das características fundamentais da pós-modernidade, por outra, persiste a sensação de que os laços e relações que a compõem há tempo estão se derretendo, se liquefazendo. Tal sensação, desenvolvida enquanto pensamento racional, sistemático e filosófico, acompanha a própria construção daquele edifício dos “tempos modernos” como legado de leis, contratos e conveniências – o qual, ao fim e ao cabo, desemboca na formação das democracias ocidentais.

Três exemplos desse acelerado processo de ruptura estrutural, seja do ponto de vista econômico e social seja do ponto de vista e político-cultural, são evidentes a olho nu. O primeiro vem da extrema precariedade das relações e dos direitos trabalhistas. Chegamos praticamente ao ponto em que os trabalhadores do mercado informal superam em número aqueles legalizados pelo mercado formal. E mesmo o emprego destes últimos sofre de abalos permanentes. Poder-se-ia afirmar que os empregos, tal como eram considerados pelas gerações passadas, foram abolidos e substituídos por serviços (ou bicos): temporários, vulneráveis e mal remunerados.

Em segundo lugar, decorrente dessa situação “líquida” quanto ao trabalho, sobram por todo lado pessoas desempregadas, subempregadas, desenraizadas e itinerantes. Trata-se de trabalhadores e trabalhadoras que poderíamos chamar de “fluídos”: sem pátria, sem rumo e quase sem endereço fixo. Não possuem qualquer tipo de referência sólida e tanto menos permanente. Não moram, acampam aqui e ali, movendo-se de acordo com os ventos e as migalhas do capital. Mais de 250 milhões de seres humanos, hoje, não residem no país em que nasceram. Isso sem contabilizar os migrantes internos e/ou temporários, os quais, segundo estimativas da ONU, beiram hoje em todo mundo a marca dos 45 milhões de pessoas. A imensa maioria deixa o lugar de nascimento devido à violência, às catástrofes climáticas, à guerra e à pobreza endêmica.

Por fim, cruzando os dois itens anteriores, chega-se a um estado de desigualdade econômica e social que cresce a velocidades assustadoras. Mesmo em tempos de crise e de pandemia (ou justamente por causa disso), o sistema de produção capitalista concentra, contemporaneamente, renda e riqueza de um lado, e exclusão social de outro. Estudos atualizados de Thomas Pikety, em nível internacional, e de Jessé de Souza, em nível nacional, põe a nu esse fosso abissal, e cada vez mais profundo, na distribuição geral dos frutos do trabalho coletivo. Flagrante claro desse desequilíbrio foi o número de pessoas que, no Brasil, procuram o auxílio emergencial de R$ 600,00 por ocasião da pandemia do novo coronavírus.

A esses três exemplos interligados – condições de trabalho precárias, aumento das migrações de massa e disparidade socioeconômica – não seria difícil acrescentar outros fatores que tornam o mundo e a sociedade “líquidos”. Derretem-se com a rapidez do gelo as relações, sejam elas de ordem interpessoal e familiar, comunitária ou social, política ou cultural; derrete-se a confiança entre as gerações, uma vez que uma tem pouco ou nada a dizer à próxima; derretem-se as boas tradições, condenadas juntamente com o “tradicionalismo”; derrete-se, enfim, a vontade e a capacidade de planejar o futuro, pois as carências e lacunas do presente, somadas à ansiedade como doença contemporânea, exigem respostas prontas e imediatas.

O fato é que quando as promessas e os compromissos se manifestam tão precários e efêmeros, também a governabilidade tende a escorregar em areia movediça e a derreter-se. Os governos Trump, nos Estados Unidos, e Bolsonaro, no Brasil, são testemunhas estridentes dessa fluidez mórbida e doentia. Dizer e desdizer, fazer e desfazer, prometer e descumprir – coisas que já eram comuns na prática política, tornaram-se o arroz-com-feijão diário. A exceção virou regra! Derreteram-se igualmente a ética e os critérios de um mandato sério e comprometido com o bem-estar do país. Rompeu-se a ponte entre a população como um todo e seu representante mais elevado, o qual passa a governar para a seita de seus seguidores fanáticos. E mais, tenta-se a todo custo fritar e derreter os canais e instrumentos, os órgãos e instituições, os mecanismos e ações de um regime democrático. Ataques e calúnias, impasses e entraves multiplicam-se a todo momento. Espinhos e pedras de tropeço atentam contra uma boa e sadia gestão.

E isso deixando de lado a temática ligada ao papel relevante e indispensável dos meios de comunicação social, da pesquisa e da ciência, como também da arte e dos artistas. Deixando de lado, ainda, a polêmica em torno das “fake news” e da Internet, em particular, e da revolução informática e cibernética, em geral, pois aí entraríamos em outro capítulo, o que requer uma reflexão bem mais ampla, específica e especializada.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM - Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2020

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

POR QUE GRITA A MINHA GENTE?

Por que trabalha, sofre e luta a minha gente?

Por que geme, chora e se organiza a minha gente?

Por que canta e dança, luta e festeja a minha gente?

Por que minha gente insiste em viver e não apenas sobreviver?

Por que se levanta e grita a minha gente no dia 7 de setembro?

 

A minha gente grita porque é vítima de exclusão social,

A minha gente grita porque quer ser protagonista do tempo,

A minha gente grita porque precisa se fazer ver e ouvir,

A minha gente grita, na pandemia, pelas janelas e varandas de suas casas,

A minha gente grita, desde sempre, pela vida em primeiro lugar,

A minha gente grita no Dia da Pátria porque jamais esqueceu a cidadania!

 

A minha gente grita contra a pobreza, a miséria e a fome,

A minha gente grita contra o racismo, o preconceito e a discriminação,

A minha gente grita com a repressão, a exploração e o autoritarismo,

A minha gente grita contra todo tipo de tirania, ditadura e império,

A minha gente grita contra os atentados ao processo democrático!

 

A minha gente grita pela dignidade, a justiça e os direitos no trabalho,

A minha gente grita pela terra onde possa plantar, colher e se alimentar,

A minha gente grita pela terra onde erguer um teto para proteger a família,

A minha gente grita pela defesa do ar, das águas, do meio ambiente e da Terra,

A minha gente grita para deixar a arquibancada da história e entrar em campo,

A minha gente grita para ter vez e voz na participação da utopia do Reino!

 

A minha gente grita em solidariedade os infectados e afetados pela pandemia,

A minha gente grita pelos milhões de mortos e pelas famílias enlutadas,

A minha gente grita na voz das mulheres sujeitas à violência doméstica.

A minha gente grita na voz dos negros que há séculos “estão privados de respirar”,

A minha gente grita na voz dos povos indígenas e das comunidades quilombolas,

A minha gente grita na voz dos migrantes, das crianças e do povo de rua,

A minha gente grita na voz de todas as minorias “invisíveis e descartáveis”!

 

A minha gente grita do fundo dos porões abandonados e esquecidos,

A minha gente grita a partir dos longínquos grotões onde impera o descaso,

A minha gente grita desde as periferias relegadas a uma cidadania de segunda classe,

A minha gente grita no campo e na cidade por saúde, educação, luz e paz;

A minha gente grita aos céus e aos deuses pela unidade de todos os povos,

A minha gente grita pela construção conjunta de “nossa casa comum”!

 

A minha gente grita por um sistema econômico onde a vida tenha primazia sobre o lucro,

Onde a produção e a produtividade importem menos que a distribuição dos frutos,

Onde idosos e crianças representem nossa memória viva e nosso futuro solidário,

Onde todos, homens e mulheres, possam fazer parte do grande mutirão pela vida,

Onde a terra, o teto e o trabalho sejam direitos sagrados e assegurados!

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM

Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2020

 

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Catástrofes agravam situação de migrantes e refugiados

 

Tomemos como ponto de partida duas notícias convergentes sobre a questão migratória em nível global. Primeiramente, de acordo com uma jornalista de um dos principais periódicos brasileiros, “a explosão que destruiu Beirute (...) atingiu em cheio os milhares de sírios que vivem na cidade. País com maior número de refugiados no mundo, proporcionalmente ao número de habitantes, o Líbano abriga cerca de 1 milhão de sírios, que representam um sexto da população do país. Dos mais de 200 mortos pela explosão no porto, no dia 4 de agosto, pelo menos 34 eram refugiados, segundo a agência da ONU para o tema (ACNUR). O número pode ser maior, já que ainda há sete desaparecidos e 124 ficaram feridos, 20 deles com ferimentos graves. Cerca de 200 mil refugiados vivem na capital libanesa” (Cfr. MANTOVANI, Flávia, portal da Folha de São Paulo, 13/08/ 2020).

A segunda notícia chega-nos do norte da África. “Em Zuara [Líbia] os migrantes ‘saudáveis’ são levados para a prisão. Os feridos são deixados ‘livres’, mas sem tratamento. A seleção é feita pelo estado de saúde. Os sobreviventes que ainda conseguem ficar de pé vão para a prisão. Aqueles cobertos de feridas e queimaduras, precisando de atenção e cuidados, são largados à própria sorte para apodrecer. Nas imagens que chegaram do sul de Trípoli pode ser vista, entre outros, um menino da Eritreia, único sobrevivente de um grupo de cerca de dez compatriotas, que conseguiu salvar das chamas o documento com o qual havia sido registrado na Líbia, na agência da ONU para refugiados. Com isso no bolso esperava obter na Europa a proteção que o direito internacional oferece a que, como ele, foge da violência e da perseguição. No início eram 85, agora 40 estão vivos. Vivos, mas não salvos” (Cfr. Reportagem de Nello Scavo, publicada pelo jornal Avvenire, em 22 de agosto de 2020, reproduzida pelo portal do IHU, 24/08/2020, com tradução de Luisa Rabolini).

Ambas as reportagens – vindas respectivamente do Líbano e da Líbia – centram o olhar sobre os migrantes e refugiados. De início e de imediato, podemos verificar que uma situação que já era extremamente precária e vulnerável, agrava-se à máxima potência seja com uma catástrofe inesperada, no caso do Líbano, seja com os efeitos pérfidos e perversos da pandemia, como no caso da Líbia. Mas os desastres de caráter natural ou humano poderiam ser repetidos às dezenas, bem como suas consequências nocivas para quem erra pelas estradas do êxodo, do exílio ou da diáspora. Os que se vêem repentinamente privados de um solo próprio, de um grupo familiar ou de uma terra que possa ser chamada de pátria, toda ameaça contém um duplo risco. Primeiro, o perigo de encontrar fechada a porta que dá acesso ao trabalho e ao sustento da família; segundo, o perigo de expatriação, sempre suspenso sobre a cabeça como uma guilhotina.

Em outras palavras, diante de uma explosão acidental (ou não?!...), como a de Beirute; em meio a uma pandemia que estende por todo o planeta seu rastro de mortos, feridos e enlutados; ou por ocasião de uma estiagem ou inundação – o imigrante tende a ser sempre o primeiro sacrificado. A ameaça será redobrada se o mesmo não estiver em dia com a documentação. No sentido de salvaguardar a população local, as autoridades, a imprensa e a própria opinião pública não hesitarão em se desfazer do “estranho e intruso”. Por toda a parte, a ideologia da segurança nacional representa o pano de fundo sobre o qual se debatem as leis migratórias. Disso resulta que o migrante ou refugiado serão irremediavelmente escolhidos como os bodes expiatórios do momento. E o será com maior razão quando se tratar de desordens econômicas, sociais e políticas. A situação de desemprego, subemprego e trabalho informal que deverá seguir-se à pandemia pesa duplamente sobre os estrangeiros de todo mundo, a menos que se trate de pessoas que já recriaram suas raízes nos países de destino, ou de técnicos, consultores e altos funcionários das empresas transnacionais. O contexto da pós-pandemia prevê caminhos áridos e íngremes para todos os cidadãos em condições vulneráveis, mas reserva dificuldades mais graves para as multidões de sem pátria que se movem pelo mundo afora.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro 1º de setembro de 2020

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Uma dor assim pungente não há de ser inutilmente


A frase do título foi extraída da composição “O bêbado e o equilibrista”, de Adir Blanc e João Bosco, música imortalizada na voz de Elis Regina. Quantas dores merecem essa designação de “pungente”! Algumas se fecham na angústia única e íntima de determinada pessoa. Outras se abatem sobre uma casa, limitando-se ao ambiente familiar. Outras, ainda, devastam uma região, um povo, uma cultura ou um país. A epidemia do novo coronavírus, ao contrário, ultrapassa todas as fronteiras, sem poupar ninguém. Deixa atrás de sua passagem um rastro sinistro de infectados, mortos e enlutados por todo o planeta. Com razão foi classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como pandemia. Palavra que se origina do grego, composta pelo prefixo “pan” + “demos”, respectivamente todo + povo. Disso decorre a afirmação da OMS, segundo a qual “pandemia é a disseminação global de uma doença nova, indicando que um vírus se espalhou por mais de um continente”.

Resultou que essa “dor assim pungente”, como um flagelo sem igual e com velocidade sem precedentes, ganhou uma abrangência tão globalizada quanto a economia, os transportes e as comunicações. Desde o começo da pandemia, aliás, o itinerário da contaminação já marcou diferentes epicentros: China, Europa, Estados Unidos, América Latina... O Brasil identificado, por sua vez, como epicentro deste último subcontinente. Em variados países, Brasil novamente incluído de forma irresponsável e catastrófica, não faltaram erros e equívocos nos diagnósticos e nas políticas de combate diante desse “inimigo invisível e silencioso”, por isso mesmo mais letal. Os próprios cientistas e pesquisadores, de modo especial os infectologistas passaram a buscar desesperadamente correr contra o tempo: num primeiro momento tentando entender o comportamento do que veio a ser chamado de Covid-19, depois utilizando todos os avanços da ciência e da tecnologia para a descoberta rápida de uma vacina. Contam-se às dezenas as que hoje estão em curso acelerado de pesquisa e produção.

Resta olhar para a segunda parte da frase tomada de empréstimo à canção de Elis Regina. Em outras palavras, de que maneira essa “dor assim pungente não há de ser inutilmente”? Além de seus efeitos perversos e consequências devastadoras, que pode ela nos trazer como aprendizado? Após meses de um convívio desgraçadamente miúdo e próximo, familiar e cotidiano com o coronavírus, é possível sim tirar dessa experiência dolorosa elementos místicos e espirituais que nos ajudam a enfrentar as adversidades e fortalecer nossa imunidade emocional e psicológica. Talvez o mais significativo seja a oportunidade de reencontro consigo mesmo, com o outro e com as dúvidas e perguntas relacionadas ao sentido da vida – coisas que nos levam à questão fundamental sobre Deus e sua presença entre nós.

O isolamento físico provocado pela quarentena por aqui, convenhamos, contou com o “jeitinho” brasileiro do drible Mas ele nos interroga profundamente sobre nosso modo de viver, de se relacionar, de ocupar o tempo, de consumir, e assim por diante. Muitos bens e urgências antes consideradas de primeira necessidade passaram a ser relativizados. Impulsos imediatos, desejos e instintos, de um lado, necessidades básicas e reais, de outro, sofreram inevitavelmente um processo de redimensionamento e ressignificação. Na medida em que as desigualdades sociais e econômicas, combinadas com as injustiças estruturais, foram viradas do avesso, os “migrantes, os excluídos, os invisíveis e os descartáveis” – termos com que o Papa Francisco chama a atenção sobre tantos trabalhadores do mercado informal – ganharam nova visibilidade.

De forma implícita ou explícita uma inquietude, também ela “pungente”, se instalou em nosso coração, ao mesmo tempo que uma reflexão profunda, inusitada e silenciosa tomava conta de nossa mente, de nossa alma e de nosso espírito. E trouxe uma redescoberta: sim, este tempo de sofrimento não foi em vão, não padecemos “inutilmente”. É possível hoje pensar num modo de vida alternativo: sóbrio, frugal, justo, fraterno, solidário, responsável e sustentável.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 17 de agosto de 2020

domingo, 16 de agosto de 2020

FENÔMENO MIGRATÓRIO NA BÍBLIA (Fragmentos de um esboço)

 

Os itens abaixo procuram garimpar e selecionar os textos bíblicos que, tanto no Antigo quanto no Novo testamento, fazem referência à questão das migrações. Estas podem ser voluntárias ou compulsórias (com forte destaque para as últimas). Enquanto na grande maioria desses textos a referência à mobilidade humana é bastante explicita, em alguns ela permanece velada. Funde-se com a situação de diferentes grupos ou circunstâncias análogas a essa vasta problemática dos movimentos humanos de massa. Não podemos esquecer, entretanto, que os escritos bíblicos, direta ou indiretamente, se originam no contexto cultural do Povo de Israel, povo historicamente marcado pelo fenômeno migratório, pelo desenraizamento e pelos deslocamentos frequentes e forçados – povo errante pelas estradas do êxodo, do deserto, do exílio e da diáspora.

 

1.      Vocação do patriarca Abraão (Gn 12, 1-9)

Abraão deve “deixar a sua terra e a casa de seu pai”

Responde ao projeto de Deus em vista da Terra Prometida

O binômio da promessa: terra e uma grande descendência

Abraão hospeda os mensageiros de Deus – Carvalho de Mambré (Gn 18, 1-10).

 

2.      Israel imigrante na terra do Egito (Livro do Gênesis, capítulos 37 – 50)

História de Jacó, José, seus irmãos e a emigração para o Egito

A migração tem raízes nas adversidades socioeconômicas:

A fome leva o povo a buscar alimento na terra do Egito (capítulo 41)

Mas José descobre que o Egito não é a Terra Prometida (capítulo 50)

 

3.      Processo de libertação da terra do Egito (Livro do Êxodo)

Libertação da escravidão sob o poder do Faraó (Ex 3, 7-10)

Paralelo com o chamado “credo histórico de Israel” (Dt 25, 5-10)

Moisés e a libertação: experiência fundante do Povo de Israel

O Deus vivo que “vê, ouve, conhece e desce” para libertar o povo

Caminha com ele pelas estradas do êxodo e do deserto, do exílio e da diáspora

 

4.      O cuidado com o estrangeiro: lembra-te que foste escravo no Egito

A experiência de imigrante e escravo: lição para a relação com o “outro”

O trinômio do Antigo Testamento: defesa do órfão, da viúva e do estrangeiro

O direito do pobre, dos excluídos e do estrangeiro (Ex 22, 17-27)

Deus protege aquele cuja vida é ameaçada (Lv 19, 9-14)

Justiça pronta e diária para com os trabalhadores (Dt 24, 14-15)

 

5.      Livros profético-sapienciais (“novelas” que transmitem um ensinamento)

Livro de Tobias: Identidade de Israel, especialmente em situação de diáspora

Livro de Rute: A luta do povo pelos seus direitos (tempo do exílio)

Livro de Jonas: A misericórdia de Deus não tem fronteiras (tempo do exílio)

Profeta Ezequiel (cap. 37): “os ossos secos” e a restauração do povo

Escritos que expressam a cultura de um povo desenraizado e a caminho.

 

6.      O mistério da encarnação do “verbo que se faz carne” (Lc 2, 1-14)

O decreto do imperador Augusto e a viagem para Belém

O Verbo se faz carne e arma sua tenda em meio à nossa história

Jesus se faz migrante no seio de Maria e no interior da família de Nazaré

“Maria deu à luz o seu primogênito, o enfaixou e o colocou na manjedoura”

Diz o evangelista: “não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2, 7)

 

7.      Prepotência do rei Herodes: fuga para o Egito (Mt 2, 1-23)

O Menino Deus sofre a condição de refugiado e tem de sair do próprio país

Jesus-Maria-José ameaçados e fugitivos no Egito: ida e retorno

Deus se manifesta através dos sonhos e dos anjos, seus mensageiros

Uma família sábia e atenta aos “sinais de Deus na história”

 

8.      O chamado “programa de Jesus” no início do seu ministério (Lc 4, 14-21)

O “programa” é extraído do Livro do profeta Isaías (Is 61, 1-3)

Jesus na Galileia: “O Espírito do Senhor está sobre mim... “

Ele enviou-me “para anunciar a Boa Notícia aos pobres...”

“Para proclamar a libertação dos presos...”

“Para libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor”!

Os “migrantes, refugiados e marítimos” entram na lista desses rostos

 

9.      O profeta itinerante de Nazaré (Teologia de John P. Meier)

“Jesus percorria todas as cidades e povoados...” (Mt 9, 35-38)

A compaixão diante das “multidões cansadas e abatidas”

Entre essas multidões podemos identificar os “diferentes rostos dos migrantes”

Paralelo com os rostos do Documento de Puebla (Doc. Puebla, n. 31-39)

 

10.  Pobre, marginalizado e migrante como critério de salvação

Pergunta o mestre da lei: O que fazer para ganhar a vida eterna, para salvar-se?

Parábola do Bom Samaritano: “Vá e faça a mesma coisa” (Lc 10, 25-37)

Parábola do Juízo Final: “eu era migrante e me acolheste”

Ou “eu era migrante e não me acolheste” (Mt 25, 31-46)

A salvação depende da atitude de cada um diante do pobre necessitado.

 

11.  Episódio de Emaús – “evangelho” da Pastoral dos Migrantes (Lc, 24, 13-35)

Na estrada de Emaús, o “forasteiro” caminha com os discípulos em fuga

Eles estavam tristes, abatidos e cabisbaixos devido à tragédia da cruz

O encontro, o convite e o reconhecimento na “benção e partilha do pão”

O retorno alegre, entusiasta e com “um novo ardor missionário”

Dois discípulos medrosos se convertem em dois missionários ardorosos

 

12.  Primeira Carta de Pedro (1Pr), escrita aos estrangeiros

Cfr. O texto da “apresentação” na Edição Pastoral da Bíblia

“Pedro, apóstolo de Jesus, aos que vivem dispersos como estrangeiros” (v 1,1)

Cristãos que tinham deixado suas raízes, os parentes e amigos...

Situação de isolamento, preconceito, discriminação e hostilidade...

A união entre os migrantes perseguidos é a “casa de Deus”;

União entre os migrantes como sinal de coesão e resistência.

 

13.  Testemunho do Apóstolo Paulo (Atos dos apóstolos e Cartas paulinas)

Transformação de “Saulo” em “Paulo”: de perseguidor a apóstolo

O encontro com o Ressuscitado no caminho de Damasco (Atos, capítulo 9)

Diálogo com os atenienses com seus deuses (Atos, capítulo 17)

O apóstolo das gentes: não há fronteiras para a Boa Nova do Evangelho

As comunidades urbanas de Paulo: encruzilhadas de viajantes

Sem orgulho e sem falsa humildade: “combati o bom combate” (2Tm 4, 6-8)

 

14.  A cidadania universal da Igreja e do Povo de Deus (Ef 2, 19-22)

“Vocês não são estrangeiros nem hóspedes, mas concidadãos...”

“Vocês pertencem ao edifício que tem como alicerce os apóstolos e profetas...”

“Vocês também são integrados nessa construção [do Reino de Deus]...”

O plano de salvação não tem fronteiras, está aberto a todos.

 

15.  O hino da encarnação e da humildade (Fl 2, 6-11)

Jesus “tinha a condição divina, mas não se apegou à sai igualdade com Deus”,

Ao contrário, “esvaziou-se a si mesmo, a sumindo a condição de servo”,

“Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz”

Deus “desce” e se faz homem, para que nós possamos “subir” à condição divina

Humilitas” é o lema do carisma scalabriniano no trabalho com os migrantes.

 

16.  Um novo céu e uma nova terra (Ap 21, 1-8)

A Jerusalém celeste: remete à profecia de Isaías (Is 65, 17-25)

“Tenda de Deus com os homens: eles serão o seu povo e Deus-com-eles”

“Ele vai enxugar todo pranto e toda lágrima dos olhos deles”

“Nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor.

Conceitos de “Reino de Deus”, “Jerusalém Celeste”, “Terra sem males”

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM

Botafogo, Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2020

 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Mais de 100 mil órfãos de pátria


Mais de 100 mil órfãos da pátria, precocemente ceifados pela Covid-19. Talvez seja razoável falar em órfãos do governo, ou melhor, órfãos do atual governo. Cem mil que não representam apenas uma cifra, e sim nomes, rostos, vidas, lutas e sonhos interrompidos, famílias enlutadas. Olhares e sorrisos que se apagaram. Certo, a memória de quem espalhou a boa semente sobre a face da terra jamais se extingue. Mas a separação é sempre dolorida e clama ao céu. E grita sobretudo quando tem consciência que milhares dessas mortes poderiam ser evitadas.

Como explicar tamanha tragédia? Por que a pandemia encontrou solo fértil no Brasil? E por que a sensação de que o flagelo poderia, sim, ser menor? Por que tanto sofrimento e tantas lágrimas engolidas e silenciadas, de modo particular entre os extratos mais pobres da sociedade? O que faltou, ou então o que sobrou por que do governo? Sobrou negligência, indiferença, e mesmo deboche e escárnio; faltou um gesto, uma palavra, um plano nacional de combate a esse inimigo invisível e, por isso mesmo, mais contagioso e letal.

Sobraram erros e discórdias, faltaram sentimentos primários e primordiais. Aqueles que, em todo mundo, entrelaçam corações e almas, mentes e espíritos. Os equívocos tiveram início com a falaciosa contraposição entre saúde e economia. Ambas andam de mãos dadas e não podem ser separadas. Um país saudável robustece a economia, da mesma forma que uma economia responsável revigora a existência e a confiança. Mas o desleixo não parou por aí! O Brasil tem sido um dos países que menos testam, o que equivale a um controle menor sobre o contágio e os óbitos. E mesmo com tão poucos testes, o país ultrapassou a marca de 3 milhões de infectados, juntamente com os mais de 100 mil mortos. Órfãos de um governo ausente, os quais, por sua vez, deixaram milhares de famílias igualmente órfãs. “E daí!”...

Certamente a história haverá de fazer o inventário completo e julgar seja o mutismo ostensivo e desrespeitoso do supremo mandatário, seja o barulho frequente e estridente por ele emitido no palácio do Planalto. Barulho feito de ruídos que repercutiram perfidamente em termos mundiais. Ruído raivoso e difamatório das fake news, fabricadas e divulgadas pelo “gabinete do ódio” e com dinheiro público; espetáculo bizarro e insistente sobre a famigerada cloroquina, remédio nunca recomendado abertamente pela ciência médica; estardalhaço imperdoável no Ministério da Saúde onde, em plena evolução da pandemia, nada menos do que dois ministros foram sumariamente dispensados, pelo simples fato der não concordarem com a receita apresentada pelo capitão como panaceia a todos os males.

Os historiadores, além disso, jamais poderão poupar as repetidas insubordinações do presidente Bolsonaro, no sentido de desrespeitar o uso da máscara e de provocar seguidas aglomerações no “cercadinho do Planalto”. Isso para sequer falar de sua cobertura aos atentados contra o poder Judiciário, contra o Congresso Nacional e contra as instituições e mecanismos democráticos em seu conjunto, como também de seus obsessivos ataques aos meios de comunicação social, aos cientistas, artistas, professores, etc. E que dizer da tentativa de esconder os números referentes aos infectados e vítimas fatais do novo coronavírus!

Menos ainda tais historiadores fecharão os olhos a um governo centrado não tanto nas urgências e necessidades básicas da nação brasileira, mas na defesa do grupo familiar e da seita de amigos e fanáticos. Para finalizar, vale uma pergunta nada cômoda: por que os cofres públicos (numa palavra, os cidadãos que pagam seus impostos devidamente) devem arcar com os altos custos de manutenção de um presidente, de um senador ou de um deputado cujos mandatos servem mais para a autodefesa diante dos procuradores e tribunais, ou para garantir a própria impunidade, do que para o bem-estar da população?

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2020

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Pandemia como ponto de chegada e ponto de partida

Do ponto de vista da relação entre os seres humanos, de um lado, com a natureza e o meio ambiente, de outro, não será exagero considerar a pandemia do Covid-19 como um ponto de chegada e, ao mesmo tempo, um ponto de partida. Ponto de chegada em referência a um modo de pensar que considera o planeta terra como objeto rico e passivo de exploração, do qual, aparentemente, poder-se-ia extrair bens ilimitados. O pensamento do filósofo francês René Descartes, com a distinção clara e taxativa entre o sujeito pensante e os objetos ou coisas, teria contribuído poderosamente para essa visão dualista entre humanidade e natureza. O processo evolutivo marcado pelos avanços da ciência e do iluminismo, que conduz o Ocidente aos “tempos modernos”, é fortemente marcado por essa premissa. Depois, com o surgimento e o progresso da tecnologia, tal evolução ganha velocidade sem precedentes, culminando na Revolução Industrial. Com a final do século XX e início do XXI, chegamos à modernidade tardia (Anthony Giddens) ou pós-modernidade (François Lyotard).

Nas últimas décadas do século passado e as primeiras deste, porém, movimentos ambientalistas e estudiosos de várias áreas seguem insistindo na redescoberta que nosso planeta azul, longe de ser um mero objeto dependente e passivo diante da ação humana, representa em lugar disso um organismo vivo. Organismo vivo que, como toda planta, todo animal e todo ser humano, sofre constantemente um processo de metabolismo que o renova e transforma. Todo ser vivo, de fato, incorpora novos ingredientes, metaboliza e integra aquilo que o faz crescer e desenvolver-se, ao mesmo tempo que rejeita e expele o que lhe é nocivo. Até mesmo as águas, o oxigênio, o ar, a luz, e inclusive a matéria inorgânica são protagonistas desse processo de seleção permanente. “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, dizia Lavoisier.

Evidente que essa redescoberta da Terra como organismo vivo precede a tragédia da pandemia que hoje assola o mundo. Mas essa, em suas exigências e consequências, é também um ponto de partida que aguça nos seres humanos uma outra relação com o meio ambiente. Aprofunda-se a consciência de que o usufruto indiscriminado dos recursos naturais, bem como a exploração ao extremo da força humana de trabalho, representa um caminho equivocado e irreversível, um beco sem saída. O uso incorreto dos bens da natureza e o abuso nas relações trabalhistas, cedo ou tarde, confronta-se com barreiras intransponíveis. Enquanto alguns bens naturais podem ser recicláveis, outros são limitados. Daí a consciência de uma vida mais simples, sóbria, frugal e responsável. O organismo terrestre não se recria como fonte vital com a velocidade com a qual a econômica globalizada busca insaciavelmente lucro e acumulação do capital.

Mas não é só isso! Na exata medida em que olhamos para o planeta Terra não como um objeto a ser manipulado em função de interesses imediatos, e sim como um organismo vivo e vital, ele se torna um outro sujeito com o qual devemos nos relacionar. Relação nova e interativa, onde a natureza e o meio ambiente, juntamente com os seres humanos, passam a agir como verdadeiros protagonistas da biodiversidade. Semelhante modo de relacionamento nos obriga, por nossa vez, a olhar diferentemente para esse “outro sujeito”, respeitando sua alteridade única e irrepetível, como também a colocarmo-nos em seu lugar, com a consciência de suas fragilidades e de suas contribuições, de sua necessidade perene de renovar-se enquanto organismo vivo, para seguir oferecendo aos seres humanos o “leite” indispensável da sobrevivência.

Em conclusão, damo-nos conta que destruir as florestas, contaminar o ar e as águas, devastar o meio ambiente e desertificar o solo é impedir a reprodução da vida. E mais, é tornar impossível a continuidade não só de nossas futuras gerações, mas também outras espécies de fauna e flora, cuja ausência nos empobrece a todos. Nessa perspectiva, o novo coronavírus funciona como um balde de água fria no consumismo frenético no “viver bem”. Ou então uma espécie de ponto de partida em direção ao horizonte do “bem viver” justo, inclusivo, responsável e sustentável.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 6 de agosto de 2020


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

TRABALHO, MIGRAÇÃO E DEFESA DO MEIO AMBIENTE

No decorrer do 5º aniversário da Carta Encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum, publicada em maio de 2015 pelo Papa Francisco, é lícito relacionar a temática da preservação do meio ambiente com a causa, hoje tão global quanto a economia, dos trabalhadores migrantes, refugiados e prófugos. Trata-se, de resto, de outra das grandes prioridades do atual pontificado. Desde sua eleição à cátedra de Pedro, Jorge Bergoglio sempre teve presente os números, os rostos, as histórias, as tragédias e as esperanças dos que se vêm obrigados a deixar a própria terra natal, aventurando-se em solo estranho pelo sonho de uma “pátria como terra que dá o pão”, na feliz expressão do bispo João B. Scalabrini, considerado “o pai e apóstolo dos migrantes”.

Na fusão dessas temáticas – trabalho, migração e meio ambiente – será ilustrativo o confronto entre duas célebres personalidades históricas, ambas de relevante influência na lenta e laboriosa evolução do pensamento ocidental. Duas figuras muito diferentes, seja do ponto de vista da origem, seja do ponto de vista do papel que exerceram na sociedade. Vale ter em conta que ambas se encontram separadas entre si por mais de 15 séculos. Em primeiro lugar, referimo-nos a Santo Agostinho, bispo de Hipona, um dos mais importantes teólogos e representante dos Padres da Igreja, nos séculos iniciais de nossa era. Passemos a palavra ao teólogo: “Quanto a ti, come e bebe tranquilamente, mas não pises os pastos, nem turves as águas (...). Não procuremos apenas ter uma boa consciência, mas, na medida em que permitirem nossas limitações, vigilantes sobre a fragilidade humana, empenhemo-nos em nada fazer que levante dúvidas para o irmão mais fraco. Não aconteça que, comendo ervas boas e bebendo águas límpidas, espezinhemos as pastagens de Deus e as ovelhas fracas comam a erva pisada e bebam a água turva” (Cfr. Sermões de Santo Agostinho, séc. IV).

Em segundo lugar, temos uma longa citação do filósofo Karl Marx. Este desenvolve a crítica da economia política no contexto febril da Revolução Industrial, na segunda metade do século XIX. Vejamos o que escreve o pensador alemão no segundo livro de O Capital: “Na agricultura moderna, bem como na indústria das cidades, o crescimento da produtividade e o rendimento superior do trabalho são comprados ao preço da destruição e do estancamento da força de trabalho. Além disso, cada progresso na agricultura capitalista é um progresso não somente da arte de explorar o trabalhador, mas também na arte de despojar o solo; cada progresso na arte de aumentar sua fertilidade por um tempo, um progresso na ruína de suas fontes duráveis de fertilidade. Quanto mais um país, Estados Unidos da América, por exemplo, se desenvolve com base na grande indústria, mais esse processo de destruição se cumpre rapidamente. A produção capitalista não desenvolve, pois, a técnica e a combinação do processo de produção social, senão esgotando ao mesmo tempo as duas fontes de onde jorra a riqueza: a terra e o trabalhador” (Cfr. MARX, Karl; citado por GORZ, André, in: A crise e o êxodo da sociedade salarial, entrevista concedida ao IHU Unisinos, cuja publicação figura como ano 3, nº 31, 2005).

Não obstante a larga distância histórica e a diferença de contexto e de visão de mundo, os dois personagens em questão, além do confronto evidente, dialogam quanto à forma de usar com responsabilidade os recursos que a natureza põe à nossa disposição. De fato, a expressão “não pises os pastos e não turves as águas”, de acordo com o primeiro, anda de mãos dadas com a crítica do segundo sobre “a arte de despojar o solo”. Se para Marx a produção capitalista tende a esgotar “as duas fontes de onde jorra a riqueza: a terra e o trabalhador”, para Agostinho a necessidade e a urgência de nutrir-se não pode estragar as fontes de alimento daqueles que virão depois. Estão em jogo, por um lado, o cuidado com o planeta, na preservação dos distintos ecossistemas e do meio ambiente; e, por outro lado, a herança que haveremos de deixar para as gerações futuras. Nada de permitir luxos excessivos em detrimento destas últimas!

Significativa é também a distância histórico-cultural que separa as duas figuras em relação à cultura e aos desafios do mundo contemporâneo. “A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra”, lê-se na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (1965), do Concílio Ecumênico Vaticano II (Cfr. GS, nº 4). O afã de um crescimento econômico como panaceia para todos os males e todas as crises impõe um sistema de produção e consumo cada vez mais acelerado. Semelhante velocidade atropela o ritmo das estações determinado pela natureza. Esta não dá conta de reciclar o ar, as águas e o solo com a rapidez que as políticas econômicas os utilizam e contaminam. Desejos despertam expectativas e estas se convertem em novas necessidades. O mercado da economia globalizada, impulsionado por tais imperativos e movido pelo motor do lucro e acumulação de capital, procura responder freneticamente a esses bens múltiplos e variados, sejam eles materiais ou imateriais. Disso resulta o descompasso entre a avidez e a pressa vertiginosa da exploração, por uma parte, e, por outra, o movimento milenar, cadenciado e sábio das leis naturais.

Daí as sistemáticas ameaças e agressões à vida em todas as formas (biodiversidade), seja no que diz respeito ao equilíbrio ecológico, seja na superexploração da força de trabalho. O resultado é duplamente negativo: leva as catástrofes ambientais a extremos sem precedentes, e desenraiza multidões de migrantes e refugiados climáticos que, sem rumo e sem pátria, erram pelas estradas do êxodo, do exílio e da diáspora em busca de uma digna e justa cidadania. Por isso, não basta “apenas ter uma boa consciência” – diz Santo Agostinho – não podemos deixar que “as ovelhas fracas comam a erva pisada e bebam a água turva”. No alerta de Marx quanto a um progresso técnico desvinculado de qualquer compensação social, não podemos ser cúmplices enquanto “esse processo de destruição se cumpre rapidamente”.

Emerge com força vital, vigorosa e veemente, a chamada “questão social”, que virá a ser a espinha dorsal da Doutrina Social da Igreja (DSI) desde seu documento inaugural, a Carta Encíclica Rerum Novarum (RN), publicada pelo então Papa Leão XIII, em maio de 1891. Vale lembrar que a temática desenvolvida pela RN – “sobre a condição dos operários” – coincide com o estudo de Friedrich Engels, companheiro de Karl Marx, publicado praticamente 50 anos antes, significativamente sobre a “situação da classe trabalhadora na Inglaterra” (1844). Como podemos concluir, apesar das tensões, conflitos e divergências, tanto no século IV quanto na segunda metade do século XIX, a preocupação da Igreja caminha lado a lado com os estudos e análises dos expoentes das ciências humanas. No horizonte está a defesa dos direitos e da dignidade humana, com uma clara opção pelos pobres, excluídos, migrantes e “descartáveis”.

Pe, Alfredo J, Gonçalves, cs,

Vice-presidente do SPM – São Paulo, 1º de agosto de 2020


segunda-feira, 6 de julho de 2020

RUÍDOS E MELODIA EM TEMPOS DE PANDEMIA


Desde Francisco de Assis e Teilhard de Chardin, cresce a consciência de que o universo como organismo vivo celebra uma grande sinfonia da criação. Tudo canta a beleza, a harmonia e a precisão de cada movimento. Cada criatura, orgânica ou inorgânica, representa um instrumento sonoro na gigantesca orquestra universal. Espaço e tempo formam, combinados, o templo profusamente iluminado dessa melodia infinita. A música da água e dos astros, do vento e da brisa, das flores e dos pássaros, são algumas entre as notas mais vivas do canto universal.
Mas esse organismo dinâmico não é a única testemunha de semelhante sinfonia. A natureza emite suas notas silenciosos, e por isso mesmo mais profundas, no íntimo de cada ser humano. Quando a quietude e o silêncio, a paz e a escuta descem como um véu sobre o espírito humano, a alma sente-se embalada por uma melodia absolutamente única, impossível de ser descrita com meras palavras. Coração e mente entram em sintonia com o ritmo do universo. A pessoa humana torna-se, então, uma nota primordial que se funde com a melodia da vida.
Os ruídos do cotidiano, entretanto, impedem deixar-se embalar por esse ritmo terno e silencioso. Taís ruídos, distintos e numerosos, são simultaneamente externos e internos. Às vezes somos nós que os procuramos, na tentativa de escapar ao medo que provoca o encontro a sós consigo mesmo. Impõem-se, nesse caso, as imagens da televisão, as mensagens das redes sociais, a voz do rádio, a conversa vã e vazia de conteúdo. Os ruídos externos, porém, persistem como uma atmosfera estridente de sons, luzes e apelos. Os rumores do marketing, da propaganda e da publicidade associam-se à pressão frenética e obsessiva da moda e do consumo.
Com a pandemia Covid-19, outros ruídos emergem e tomam conta do dia-a-dia. De um lado, os números de infectados e de mortos, as orientações sobre os cuidados e a limpeza sanitária, as hipóteses de infectologistas sobre curas e vacinas, os anúncios por vezes descabidos sobre remédios “milagrosos”... De outro lado, acertos e desacertos das autoridades sobre como comportar-se na quarentena e no isolamento, corrupção no uso de recursos destinados ao combate do coronavírus, fake news na divulgação dos dados e fatos, acompanhada de insistente politização da pandemia... E ainda, 24 horas sobre 24, informações repetidas e recicladas, como notícias que não param de martelar os ouvidos.
Como reencontrar a suavidade da quietude, do silêncio e da escuta? Como entrar em sintonia com a música, secreta e mágica, que rege o universo? Que fazer para encontrar uma hora, um minuto, um segundo que seja, de paz e harmonia? A resposta bifurca-se em dois caminhos: o primeiro é tentar esquecer tudo e ouvir a voz do coração e da alma, para alguns a voz da natureza ou de Deus. Mas aqui será fácil tropeçar numa armadilha comum. A exemplo de um rosto que se ama, quanto maior o esforço para esquecê-lo, tanto mais ele se faz presente.
A segunda tentativa é rezar os ruídos! Isso mesmo, rezar os próprios ruídos! Tomar consciência deles, identificá-los um a um, dar-lhes os nomes reais – com isso, abre-se a possibilidade de que ocorra uma transfiguração de cada ruído. A humildade e a coragem de tomá-lo pela mão e de encará-lo de frente pode converter o ruído em nota musical. Vale o mesmo com o medo ou o pecado. Ao segurar o touro pelas rédeas, sua fúria transforma-se em mansidão. Discernir, fixar e verbalizar aquilo que nos incomoda é uma forma de vencer sua força.
Deparamos então com a alquimia do silêncio, da escuta, da oração, do retiro, da meditação. Tal processo não modifica os ruídos ou problemas; modifica a maneira de encará-los. Dar nome aos fantasmas que, como sombras sinistras ameaçam a vida, é uma forma de jogar luz sobre eles, o que neutraliza seu peso real e sua energia nefasta. Esse é o segredo: no silêncio da oração, as roucas notas do ruído se transfiguram em melodia. Reencontramos a sintonia entre o espírito e a grande orquestra do universo. A alma volta a repousar no embalo do berço humano-divino.

Pe. Alfredo J, Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – São Paulo, 6 de julho de 2020



quinta-feira, 18 de junho de 2020

UM HÓSPEDE INQUIETANTE


A expressão foi usada pelo filósofo alemão Nietzsche: “O niilismo está às portas: de onde vem ele, o mais inquietante entre os hóspedes”? (Cfr. Fragmentos íntimos, 1885-87). Logo depois, foi retomada por outro filósofo alemão: “A ausência de pensamento é um hospede inquietante que se insinua por toda parte no mundo de hoje” (Cfr. Heidegger, 1959). Mais recentemente, o também filósofo italiano Umberto Galimberti, por sua vez, publicou um livro com o seguinte título: “O hóspede inquietante – o niilismo e os jovens”. De acordo com a Wikipédia, “niilismo é uma doutrina filosófica que atinge as mais variadas esferas do mundo contemporâneo (arte (literaturaciências humanas, teorias sociais, ética e moral) cuja principal característica é uma visão cética radical em relação às interpretações da realidade, que aniquila valores e convicções. É a desvalorização e a morte do sentido”.
O negacionismo proclamado por alguns chefes de Estado, de alguma forma, mergulha suas raízes nesse processo cínico, cético e desconstrutivo, seja no que diz respeito aos valores e referências tradicionais, seja no que se refere ao trabalho da pesquisa científica. Neste caso, o ato de minar e desqualificar expressões culturais consolidadas ou descobertas inovadoras da ciência é uma maneira de ocultar a própria ignorância. Não possuindo argumentos válidos e racionais para um diálogo aberto e responsável, apelam para o bordão autoritário. O mesmo ocorre, por exemplo, com aquele marido que, incapaz de se contrapor às observações razoáveis da esposa, impõe-se pelo grito, pelo punho, quando não pela faca ou o revólver. Ou seja, a violência costuma ser a arma favorita de quem não dispõe de razão. Sem poder contar com uma autoridade natural, baseada no bom senso e num relacionamento digno, respeitoso e igualitário, predomina o autoritarismo. A falta de cérebro leva ao uso da força bruta.
Em tempos de pandemia e de quarentena, a postura fundamentada no niilismo negacionista tende a desmontar pela raiz qualquer planejamento sério para o combate do Covid-19. A batalha contra o vírus se converte em um cego tiroteio, onde cada um atira por conta própria e a esmo, com o risco de atingir outros soldados que deveriam estar do mesmo lado do front. Além disso, as opiniões pessoais, partidárias, políticas, corporativistas ou ideológicas acabam sobrepondo-se às orientações dos estudiosos especialistas em infectologia. Mais grave ainda! Autoridades que nunca frequentaram uma faculdade de medicina passam a ditar as regras e as medidas, tanto no sentido de fazer apologia de medicamentos sem eficácia assegurada, quanto no sentido de apontar de forma obsessiva e irresponsável um receituário com comprovados efeitos colaterais de risco. No Brasil do governo Bolsonaro, quando a tragédia registra o maior número de mortes, chega-se ao ponto de transformar o Ministério da Saúde em um verdadeiro quartel do Exército, onde os militares substituem a experiência dos técnicos.
Em semelhante cenário, quem é nosso “hóspede inquietante”? O coronavírus ou o governo de plantão? Talvez a perversa combinação de ambos! No momento de juntar as forças contra o “inimigo comum e invisível”, Jair Bolsonaro, seu clã familiar e seus fanáticos seguidores põem-se a brigar com as instituições democráticas: os poderes judiciário e legislativo, por um lado e, por outro, os governadores e prefeitos. Ademais, em lugar de corrigir declarações e atitudes indignas de um mandatário, e que depois são amplamente disseminadas pela mídia, termina por se indispor contra os representantes do jornal, do rádio, da televisão, etc. Em termos figurados, é como tentar apagar o fogo soprando na fumaça. Os meios de comunicação social, na verdade, são a caixa de ressonância do que vem da fonte, que são os fatos e imagens. E estes, por sua vez, há tempo refletem uma realidade de polarização. Se a polarização se revela como uma usina de intrigas, ódio, mentiras e ataques; se ela insiste em desconhecer o diálogo e parte sempre para o confronto; e se busca obsessivamente um inimigo para consolidar a própria natureza – o que mais pode transmitir a imprensa, seja ela falada, escrita ou televisionada!?...
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 18 de junho de 2020