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terça-feira, 18 de agosto de 2020

Uma dor assim pungente não há de ser inutilmente


A frase do título foi extraída da composição “O bêbado e o equilibrista”, de Adir Blanc e João Bosco, música imortalizada na voz de Elis Regina. Quantas dores merecem essa designação de “pungente”! Algumas se fecham na angústia única e íntima de determinada pessoa. Outras se abatem sobre uma casa, limitando-se ao ambiente familiar. Outras, ainda, devastam uma região, um povo, uma cultura ou um país. A epidemia do novo coronavírus, ao contrário, ultrapassa todas as fronteiras, sem poupar ninguém. Deixa atrás de sua passagem um rastro sinistro de infectados, mortos e enlutados por todo o planeta. Com razão foi classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como pandemia. Palavra que se origina do grego, composta pelo prefixo “pan” + “demos”, respectivamente todo + povo. Disso decorre a afirmação da OMS, segundo a qual “pandemia é a disseminação global de uma doença nova, indicando que um vírus se espalhou por mais de um continente”.

Resultou que essa “dor assim pungente”, como um flagelo sem igual e com velocidade sem precedentes, ganhou uma abrangência tão globalizada quanto a economia, os transportes e as comunicações. Desde o começo da pandemia, aliás, o itinerário da contaminação já marcou diferentes epicentros: China, Europa, Estados Unidos, América Latina... O Brasil identificado, por sua vez, como epicentro deste último subcontinente. Em variados países, Brasil novamente incluído de forma irresponsável e catastrófica, não faltaram erros e equívocos nos diagnósticos e nas políticas de combate diante desse “inimigo invisível e silencioso”, por isso mesmo mais letal. Os próprios cientistas e pesquisadores, de modo especial os infectologistas passaram a buscar desesperadamente correr contra o tempo: num primeiro momento tentando entender o comportamento do que veio a ser chamado de Covid-19, depois utilizando todos os avanços da ciência e da tecnologia para a descoberta rápida de uma vacina. Contam-se às dezenas as que hoje estão em curso acelerado de pesquisa e produção.

Resta olhar para a segunda parte da frase tomada de empréstimo à canção de Elis Regina. Em outras palavras, de que maneira essa “dor assim pungente não há de ser inutilmente”? Além de seus efeitos perversos e consequências devastadoras, que pode ela nos trazer como aprendizado? Após meses de um convívio desgraçadamente miúdo e próximo, familiar e cotidiano com o coronavírus, é possível sim tirar dessa experiência dolorosa elementos místicos e espirituais que nos ajudam a enfrentar as adversidades e fortalecer nossa imunidade emocional e psicológica. Talvez o mais significativo seja a oportunidade de reencontro consigo mesmo, com o outro e com as dúvidas e perguntas relacionadas ao sentido da vida – coisas que nos levam à questão fundamental sobre Deus e sua presença entre nós.

O isolamento físico provocado pela quarentena por aqui, convenhamos, contou com o “jeitinho” brasileiro do drible Mas ele nos interroga profundamente sobre nosso modo de viver, de se relacionar, de ocupar o tempo, de consumir, e assim por diante. Muitos bens e urgências antes consideradas de primeira necessidade passaram a ser relativizados. Impulsos imediatos, desejos e instintos, de um lado, necessidades básicas e reais, de outro, sofreram inevitavelmente um processo de redimensionamento e ressignificação. Na medida em que as desigualdades sociais e econômicas, combinadas com as injustiças estruturais, foram viradas do avesso, os “migrantes, os excluídos, os invisíveis e os descartáveis” – termos com que o Papa Francisco chama a atenção sobre tantos trabalhadores do mercado informal – ganharam nova visibilidade.

De forma implícita ou explícita uma inquietude, também ela “pungente”, se instalou em nosso coração, ao mesmo tempo que uma reflexão profunda, inusitada e silenciosa tomava conta de nossa mente, de nossa alma e de nosso espírito. E trouxe uma redescoberta: sim, este tempo de sofrimento não foi em vão, não padecemos “inutilmente”. É possível hoje pensar num modo de vida alternativo: sóbrio, frugal, justo, fraterno, solidário, responsável e sustentável.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 17 de agosto de 2020

domingo, 16 de agosto de 2020

FENÔMENO MIGRATÓRIO NA BÍBLIA (Fragmentos de um esboço)

 

Os itens abaixo procuram garimpar e selecionar os textos bíblicos que, tanto no Antigo quanto no Novo testamento, fazem referência à questão das migrações. Estas podem ser voluntárias ou compulsórias (com forte destaque para as últimas). Enquanto na grande maioria desses textos a referência à mobilidade humana é bastante explicita, em alguns ela permanece velada. Funde-se com a situação de diferentes grupos ou circunstâncias análogas a essa vasta problemática dos movimentos humanos de massa. Não podemos esquecer, entretanto, que os escritos bíblicos, direta ou indiretamente, se originam no contexto cultural do Povo de Israel, povo historicamente marcado pelo fenômeno migratório, pelo desenraizamento e pelos deslocamentos frequentes e forçados – povo errante pelas estradas do êxodo, do deserto, do exílio e da diáspora.

 

1.      Vocação do patriarca Abraão (Gn 12, 1-9)

Abraão deve “deixar a sua terra e a casa de seu pai”

Responde ao projeto de Deus em vista da Terra Prometida

O binômio da promessa: terra e uma grande descendência

Abraão hospeda os mensageiros de Deus – Carvalho de Mambré (Gn 18, 1-10).

 

2.      Israel imigrante na terra do Egito (Livro do Gênesis, capítulos 37 – 50)

História de Jacó, José, seus irmãos e a emigração para o Egito

A migração tem raízes nas adversidades socioeconômicas:

A fome leva o povo a buscar alimento na terra do Egito (capítulo 41)

Mas José descobre que o Egito não é a Terra Prometida (capítulo 50)

 

3.      Processo de libertação da terra do Egito (Livro do Êxodo)

Libertação da escravidão sob o poder do Faraó (Ex 3, 7-10)

Paralelo com o chamado “credo histórico de Israel” (Dt 25, 5-10)

Moisés e a libertação: experiência fundante do Povo de Israel

O Deus vivo que “vê, ouve, conhece e desce” para libertar o povo

Caminha com ele pelas estradas do êxodo e do deserto, do exílio e da diáspora

 

4.      O cuidado com o estrangeiro: lembra-te que foste escravo no Egito

A experiência de imigrante e escravo: lição para a relação com o “outro”

O trinômio do Antigo Testamento: defesa do órfão, da viúva e do estrangeiro

O direito do pobre, dos excluídos e do estrangeiro (Ex 22, 17-27)

Deus protege aquele cuja vida é ameaçada (Lv 19, 9-14)

Justiça pronta e diária para com os trabalhadores (Dt 24, 14-15)

 

5.      Livros profético-sapienciais (“novelas” que transmitem um ensinamento)

Livro de Tobias: Identidade de Israel, especialmente em situação de diáspora

Livro de Rute: A luta do povo pelos seus direitos (tempo do exílio)

Livro de Jonas: A misericórdia de Deus não tem fronteiras (tempo do exílio)

Profeta Ezequiel (cap. 37): “os ossos secos” e a restauração do povo

Escritos que expressam a cultura de um povo desenraizado e a caminho.

 

6.      O mistério da encarnação do “verbo que se faz carne” (Lc 2, 1-14)

O decreto do imperador Augusto e a viagem para Belém

O Verbo se faz carne e arma sua tenda em meio à nossa história

Jesus se faz migrante no seio de Maria e no interior da família de Nazaré

“Maria deu à luz o seu primogênito, o enfaixou e o colocou na manjedoura”

Diz o evangelista: “não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2, 7)

 

7.      Prepotência do rei Herodes: fuga para o Egito (Mt 2, 1-23)

O Menino Deus sofre a condição de refugiado e tem de sair do próprio país

Jesus-Maria-José ameaçados e fugitivos no Egito: ida e retorno

Deus se manifesta através dos sonhos e dos anjos, seus mensageiros

Uma família sábia e atenta aos “sinais de Deus na história”

 

8.      O chamado “programa de Jesus” no início do seu ministério (Lc 4, 14-21)

O “programa” é extraído do Livro do profeta Isaías (Is 61, 1-3)

Jesus na Galileia: “O Espírito do Senhor está sobre mim... “

Ele enviou-me “para anunciar a Boa Notícia aos pobres...”

“Para proclamar a libertação dos presos...”

“Para libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor”!

Os “migrantes, refugiados e marítimos” entram na lista desses rostos

 

9.      O profeta itinerante de Nazaré (Teologia de John P. Meier)

“Jesus percorria todas as cidades e povoados...” (Mt 9, 35-38)

A compaixão diante das “multidões cansadas e abatidas”

Entre essas multidões podemos identificar os “diferentes rostos dos migrantes”

Paralelo com os rostos do Documento de Puebla (Doc. Puebla, n. 31-39)

 

10.  Pobre, marginalizado e migrante como critério de salvação

Pergunta o mestre da lei: O que fazer para ganhar a vida eterna, para salvar-se?

Parábola do Bom Samaritano: “Vá e faça a mesma coisa” (Lc 10, 25-37)

Parábola do Juízo Final: “eu era migrante e me acolheste”

Ou “eu era migrante e não me acolheste” (Mt 25, 31-46)

A salvação depende da atitude de cada um diante do pobre necessitado.

 

11.  Episódio de Emaús – “evangelho” da Pastoral dos Migrantes (Lc, 24, 13-35)

Na estrada de Emaús, o “forasteiro” caminha com os discípulos em fuga

Eles estavam tristes, abatidos e cabisbaixos devido à tragédia da cruz

O encontro, o convite e o reconhecimento na “benção e partilha do pão”

O retorno alegre, entusiasta e com “um novo ardor missionário”

Dois discípulos medrosos se convertem em dois missionários ardorosos

 

12.  Primeira Carta de Pedro (1Pr), escrita aos estrangeiros

Cfr. O texto da “apresentação” na Edição Pastoral da Bíblia

“Pedro, apóstolo de Jesus, aos que vivem dispersos como estrangeiros” (v 1,1)

Cristãos que tinham deixado suas raízes, os parentes e amigos...

Situação de isolamento, preconceito, discriminação e hostilidade...

A união entre os migrantes perseguidos é a “casa de Deus”;

União entre os migrantes como sinal de coesão e resistência.

 

13.  Testemunho do Apóstolo Paulo (Atos dos apóstolos e Cartas paulinas)

Transformação de “Saulo” em “Paulo”: de perseguidor a apóstolo

O encontro com o Ressuscitado no caminho de Damasco (Atos, capítulo 9)

Diálogo com os atenienses com seus deuses (Atos, capítulo 17)

O apóstolo das gentes: não há fronteiras para a Boa Nova do Evangelho

As comunidades urbanas de Paulo: encruzilhadas de viajantes

Sem orgulho e sem falsa humildade: “combati o bom combate” (2Tm 4, 6-8)

 

14.  A cidadania universal da Igreja e do Povo de Deus (Ef 2, 19-22)

“Vocês não são estrangeiros nem hóspedes, mas concidadãos...”

“Vocês pertencem ao edifício que tem como alicerce os apóstolos e profetas...”

“Vocês também são integrados nessa construção [do Reino de Deus]...”

O plano de salvação não tem fronteiras, está aberto a todos.

 

15.  O hino da encarnação e da humildade (Fl 2, 6-11)

Jesus “tinha a condição divina, mas não se apegou à sai igualdade com Deus”,

Ao contrário, “esvaziou-se a si mesmo, a sumindo a condição de servo”,

“Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz”

Deus “desce” e se faz homem, para que nós possamos “subir” à condição divina

Humilitas” é o lema do carisma scalabriniano no trabalho com os migrantes.

 

16.  Um novo céu e uma nova terra (Ap 21, 1-8)

A Jerusalém celeste: remete à profecia de Isaías (Is 65, 17-25)

“Tenda de Deus com os homens: eles serão o seu povo e Deus-com-eles”

“Ele vai enxugar todo pranto e toda lágrima dos olhos deles”

“Nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor.

Conceitos de “Reino de Deus”, “Jerusalém Celeste”, “Terra sem males”

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM

Botafogo, Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2020

 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Mais de 100 mil órfãos de pátria


Mais de 100 mil órfãos da pátria, precocemente ceifados pela Covid-19. Talvez seja razoável falar em órfãos do governo, ou melhor, órfãos do atual governo. Cem mil que não representam apenas uma cifra, e sim nomes, rostos, vidas, lutas e sonhos interrompidos, famílias enlutadas. Olhares e sorrisos que se apagaram. Certo, a memória de quem espalhou a boa semente sobre a face da terra jamais se extingue. Mas a separação é sempre dolorida e clama ao céu. E grita sobretudo quando tem consciência que milhares dessas mortes poderiam ser evitadas.

Como explicar tamanha tragédia? Por que a pandemia encontrou solo fértil no Brasil? E por que a sensação de que o flagelo poderia, sim, ser menor? Por que tanto sofrimento e tantas lágrimas engolidas e silenciadas, de modo particular entre os extratos mais pobres da sociedade? O que faltou, ou então o que sobrou por que do governo? Sobrou negligência, indiferença, e mesmo deboche e escárnio; faltou um gesto, uma palavra, um plano nacional de combate a esse inimigo invisível e, por isso mesmo, mais contagioso e letal.

Sobraram erros e discórdias, faltaram sentimentos primários e primordiais. Aqueles que, em todo mundo, entrelaçam corações e almas, mentes e espíritos. Os equívocos tiveram início com a falaciosa contraposição entre saúde e economia. Ambas andam de mãos dadas e não podem ser separadas. Um país saudável robustece a economia, da mesma forma que uma economia responsável revigora a existência e a confiança. Mas o desleixo não parou por aí! O Brasil tem sido um dos países que menos testam, o que equivale a um controle menor sobre o contágio e os óbitos. E mesmo com tão poucos testes, o país ultrapassou a marca de 3 milhões de infectados, juntamente com os mais de 100 mil mortos. Órfãos de um governo ausente, os quais, por sua vez, deixaram milhares de famílias igualmente órfãs. “E daí!”...

Certamente a história haverá de fazer o inventário completo e julgar seja o mutismo ostensivo e desrespeitoso do supremo mandatário, seja o barulho frequente e estridente por ele emitido no palácio do Planalto. Barulho feito de ruídos que repercutiram perfidamente em termos mundiais. Ruído raivoso e difamatório das fake news, fabricadas e divulgadas pelo “gabinete do ódio” e com dinheiro público; espetáculo bizarro e insistente sobre a famigerada cloroquina, remédio nunca recomendado abertamente pela ciência médica; estardalhaço imperdoável no Ministério da Saúde onde, em plena evolução da pandemia, nada menos do que dois ministros foram sumariamente dispensados, pelo simples fato der não concordarem com a receita apresentada pelo capitão como panaceia a todos os males.

Os historiadores, além disso, jamais poderão poupar as repetidas insubordinações do presidente Bolsonaro, no sentido de desrespeitar o uso da máscara e de provocar seguidas aglomerações no “cercadinho do Planalto”. Isso para sequer falar de sua cobertura aos atentados contra o poder Judiciário, contra o Congresso Nacional e contra as instituições e mecanismos democráticos em seu conjunto, como também de seus obsessivos ataques aos meios de comunicação social, aos cientistas, artistas, professores, etc. E que dizer da tentativa de esconder os números referentes aos infectados e vítimas fatais do novo coronavírus!

Menos ainda tais historiadores fecharão os olhos a um governo centrado não tanto nas urgências e necessidades básicas da nação brasileira, mas na defesa do grupo familiar e da seita de amigos e fanáticos. Para finalizar, vale uma pergunta nada cômoda: por que os cofres públicos (numa palavra, os cidadãos que pagam seus impostos devidamente) devem arcar com os altos custos de manutenção de um presidente, de um senador ou de um deputado cujos mandatos servem mais para a autodefesa diante dos procuradores e tribunais, ou para garantir a própria impunidade, do que para o bem-estar da população?

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2020

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Pandemia como ponto de chegada e ponto de partida

Do ponto de vista da relação entre os seres humanos, de um lado, com a natureza e o meio ambiente, de outro, não será exagero considerar a pandemia do Covid-19 como um ponto de chegada e, ao mesmo tempo, um ponto de partida. Ponto de chegada em referência a um modo de pensar que considera o planeta terra como objeto rico e passivo de exploração, do qual, aparentemente, poder-se-ia extrair bens ilimitados. O pensamento do filósofo francês René Descartes, com a distinção clara e taxativa entre o sujeito pensante e os objetos ou coisas, teria contribuído poderosamente para essa visão dualista entre humanidade e natureza. O processo evolutivo marcado pelos avanços da ciência e do iluminismo, que conduz o Ocidente aos “tempos modernos”, é fortemente marcado por essa premissa. Depois, com o surgimento e o progresso da tecnologia, tal evolução ganha velocidade sem precedentes, culminando na Revolução Industrial. Com a final do século XX e início do XXI, chegamos à modernidade tardia (Anthony Giddens) ou pós-modernidade (François Lyotard).

Nas últimas décadas do século passado e as primeiras deste, porém, movimentos ambientalistas e estudiosos de várias áreas seguem insistindo na redescoberta que nosso planeta azul, longe de ser um mero objeto dependente e passivo diante da ação humana, representa em lugar disso um organismo vivo. Organismo vivo que, como toda planta, todo animal e todo ser humano, sofre constantemente um processo de metabolismo que o renova e transforma. Todo ser vivo, de fato, incorpora novos ingredientes, metaboliza e integra aquilo que o faz crescer e desenvolver-se, ao mesmo tempo que rejeita e expele o que lhe é nocivo. Até mesmo as águas, o oxigênio, o ar, a luz, e inclusive a matéria inorgânica são protagonistas desse processo de seleção permanente. “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, dizia Lavoisier.

Evidente que essa redescoberta da Terra como organismo vivo precede a tragédia da pandemia que hoje assola o mundo. Mas essa, em suas exigências e consequências, é também um ponto de partida que aguça nos seres humanos uma outra relação com o meio ambiente. Aprofunda-se a consciência de que o usufruto indiscriminado dos recursos naturais, bem como a exploração ao extremo da força humana de trabalho, representa um caminho equivocado e irreversível, um beco sem saída. O uso incorreto dos bens da natureza e o abuso nas relações trabalhistas, cedo ou tarde, confronta-se com barreiras intransponíveis. Enquanto alguns bens naturais podem ser recicláveis, outros são limitados. Daí a consciência de uma vida mais simples, sóbria, frugal e responsável. O organismo terrestre não se recria como fonte vital com a velocidade com a qual a econômica globalizada busca insaciavelmente lucro e acumulação do capital.

Mas não é só isso! Na exata medida em que olhamos para o planeta Terra não como um objeto a ser manipulado em função de interesses imediatos, e sim como um organismo vivo e vital, ele se torna um outro sujeito com o qual devemos nos relacionar. Relação nova e interativa, onde a natureza e o meio ambiente, juntamente com os seres humanos, passam a agir como verdadeiros protagonistas da biodiversidade. Semelhante modo de relacionamento nos obriga, por nossa vez, a olhar diferentemente para esse “outro sujeito”, respeitando sua alteridade única e irrepetível, como também a colocarmo-nos em seu lugar, com a consciência de suas fragilidades e de suas contribuições, de sua necessidade perene de renovar-se enquanto organismo vivo, para seguir oferecendo aos seres humanos o “leite” indispensável da sobrevivência.

Em conclusão, damo-nos conta que destruir as florestas, contaminar o ar e as águas, devastar o meio ambiente e desertificar o solo é impedir a reprodução da vida. E mais, é tornar impossível a continuidade não só de nossas futuras gerações, mas também outras espécies de fauna e flora, cuja ausência nos empobrece a todos. Nessa perspectiva, o novo coronavírus funciona como um balde de água fria no consumismo frenético no “viver bem”. Ou então uma espécie de ponto de partida em direção ao horizonte do “bem viver” justo, inclusivo, responsável e sustentável.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 6 de agosto de 2020


segunda-feira, 3 de agosto de 2020

TRABALHO, MIGRAÇÃO E DEFESA DO MEIO AMBIENTE

No decorrer do 5º aniversário da Carta Encíclica Laudato Si’, sobre o cuidado da casa comum, publicada em maio de 2015 pelo Papa Francisco, é lícito relacionar a temática da preservação do meio ambiente com a causa, hoje tão global quanto a economia, dos trabalhadores migrantes, refugiados e prófugos. Trata-se, de resto, de outra das grandes prioridades do atual pontificado. Desde sua eleição à cátedra de Pedro, Jorge Bergoglio sempre teve presente os números, os rostos, as histórias, as tragédias e as esperanças dos que se vêm obrigados a deixar a própria terra natal, aventurando-se em solo estranho pelo sonho de uma “pátria como terra que dá o pão”, na feliz expressão do bispo João B. Scalabrini, considerado “o pai e apóstolo dos migrantes”.

Na fusão dessas temáticas – trabalho, migração e meio ambiente – será ilustrativo o confronto entre duas célebres personalidades históricas, ambas de relevante influência na lenta e laboriosa evolução do pensamento ocidental. Duas figuras muito diferentes, seja do ponto de vista da origem, seja do ponto de vista do papel que exerceram na sociedade. Vale ter em conta que ambas se encontram separadas entre si por mais de 15 séculos. Em primeiro lugar, referimo-nos a Santo Agostinho, bispo de Hipona, um dos mais importantes teólogos e representante dos Padres da Igreja, nos séculos iniciais de nossa era. Passemos a palavra ao teólogo: “Quanto a ti, come e bebe tranquilamente, mas não pises os pastos, nem turves as águas (...). Não procuremos apenas ter uma boa consciência, mas, na medida em que permitirem nossas limitações, vigilantes sobre a fragilidade humana, empenhemo-nos em nada fazer que levante dúvidas para o irmão mais fraco. Não aconteça que, comendo ervas boas e bebendo águas límpidas, espezinhemos as pastagens de Deus e as ovelhas fracas comam a erva pisada e bebam a água turva” (Cfr. Sermões de Santo Agostinho, séc. IV).

Em segundo lugar, temos uma longa citação do filósofo Karl Marx. Este desenvolve a crítica da economia política no contexto febril da Revolução Industrial, na segunda metade do século XIX. Vejamos o que escreve o pensador alemão no segundo livro de O Capital: “Na agricultura moderna, bem como na indústria das cidades, o crescimento da produtividade e o rendimento superior do trabalho são comprados ao preço da destruição e do estancamento da força de trabalho. Além disso, cada progresso na agricultura capitalista é um progresso não somente da arte de explorar o trabalhador, mas também na arte de despojar o solo; cada progresso na arte de aumentar sua fertilidade por um tempo, um progresso na ruína de suas fontes duráveis de fertilidade. Quanto mais um país, Estados Unidos da América, por exemplo, se desenvolve com base na grande indústria, mais esse processo de destruição se cumpre rapidamente. A produção capitalista não desenvolve, pois, a técnica e a combinação do processo de produção social, senão esgotando ao mesmo tempo as duas fontes de onde jorra a riqueza: a terra e o trabalhador” (Cfr. MARX, Karl; citado por GORZ, André, in: A crise e o êxodo da sociedade salarial, entrevista concedida ao IHU Unisinos, cuja publicação figura como ano 3, nº 31, 2005).

Não obstante a larga distância histórica e a diferença de contexto e de visão de mundo, os dois personagens em questão, além do confronto evidente, dialogam quanto à forma de usar com responsabilidade os recursos que a natureza põe à nossa disposição. De fato, a expressão “não pises os pastos e não turves as águas”, de acordo com o primeiro, anda de mãos dadas com a crítica do segundo sobre “a arte de despojar o solo”. Se para Marx a produção capitalista tende a esgotar “as duas fontes de onde jorra a riqueza: a terra e o trabalhador”, para Agostinho a necessidade e a urgência de nutrir-se não pode estragar as fontes de alimento daqueles que virão depois. Estão em jogo, por um lado, o cuidado com o planeta, na preservação dos distintos ecossistemas e do meio ambiente; e, por outro lado, a herança que haveremos de deixar para as gerações futuras. Nada de permitir luxos excessivos em detrimento destas últimas!

Significativa é também a distância histórico-cultural que separa as duas figuras em relação à cultura e aos desafios do mundo contemporâneo. “A humanidade vive hoje uma fase nova da sua história, na qual profundas e rápidas transformações se estendem progressivamente a toda a terra”, lê-se na Constituição Pastoral Gaudium et Spes (1965), do Concílio Ecumênico Vaticano II (Cfr. GS, nº 4). O afã de um crescimento econômico como panaceia para todos os males e todas as crises impõe um sistema de produção e consumo cada vez mais acelerado. Semelhante velocidade atropela o ritmo das estações determinado pela natureza. Esta não dá conta de reciclar o ar, as águas e o solo com a rapidez que as políticas econômicas os utilizam e contaminam. Desejos despertam expectativas e estas se convertem em novas necessidades. O mercado da economia globalizada, impulsionado por tais imperativos e movido pelo motor do lucro e acumulação de capital, procura responder freneticamente a esses bens múltiplos e variados, sejam eles materiais ou imateriais. Disso resulta o descompasso entre a avidez e a pressa vertiginosa da exploração, por uma parte, e, por outra, o movimento milenar, cadenciado e sábio das leis naturais.

Daí as sistemáticas ameaças e agressões à vida em todas as formas (biodiversidade), seja no que diz respeito ao equilíbrio ecológico, seja na superexploração da força de trabalho. O resultado é duplamente negativo: leva as catástrofes ambientais a extremos sem precedentes, e desenraiza multidões de migrantes e refugiados climáticos que, sem rumo e sem pátria, erram pelas estradas do êxodo, do exílio e da diáspora em busca de uma digna e justa cidadania. Por isso, não basta “apenas ter uma boa consciência” – diz Santo Agostinho – não podemos deixar que “as ovelhas fracas comam a erva pisada e bebam a água turva”. No alerta de Marx quanto a um progresso técnico desvinculado de qualquer compensação social, não podemos ser cúmplices enquanto “esse processo de destruição se cumpre rapidamente”.

Emerge com força vital, vigorosa e veemente, a chamada “questão social”, que virá a ser a espinha dorsal da Doutrina Social da Igreja (DSI) desde seu documento inaugural, a Carta Encíclica Rerum Novarum (RN), publicada pelo então Papa Leão XIII, em maio de 1891. Vale lembrar que a temática desenvolvida pela RN – “sobre a condição dos operários” – coincide com o estudo de Friedrich Engels, companheiro de Karl Marx, publicado praticamente 50 anos antes, significativamente sobre a “situação da classe trabalhadora na Inglaterra” (1844). Como podemos concluir, apesar das tensões, conflitos e divergências, tanto no século IV quanto na segunda metade do século XIX, a preocupação da Igreja caminha lado a lado com os estudos e análises dos expoentes das ciências humanas. No horizonte está a defesa dos direitos e da dignidade humana, com uma clara opção pelos pobres, excluídos, migrantes e “descartáveis”.

Pe, Alfredo J, Gonçalves, cs,

Vice-presidente do SPM – São Paulo, 1º de agosto de 2020