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quinta-feira, 18 de junho de 2020

UM HÓSPEDE INQUIETANTE


A expressão foi usada pelo filósofo alemão Nietzsche: “O niilismo está às portas: de onde vem ele, o mais inquietante entre os hóspedes”? (Cfr. Fragmentos íntimos, 1885-87). Logo depois, foi retomada por outro filósofo alemão: “A ausência de pensamento é um hospede inquietante que se insinua por toda parte no mundo de hoje” (Cfr. Heidegger, 1959). Mais recentemente, o também filósofo italiano Umberto Galimberti, por sua vez, publicou um livro com o seguinte título: “O hóspede inquietante – o niilismo e os jovens”. De acordo com a Wikipédia, “niilismo é uma doutrina filosófica que atinge as mais variadas esferas do mundo contemporâneo (arte (literaturaciências humanas, teorias sociais, ética e moral) cuja principal característica é uma visão cética radical em relação às interpretações da realidade, que aniquila valores e convicções. É a desvalorização e a morte do sentido”.
O negacionismo proclamado por alguns chefes de Estado, de alguma forma, mergulha suas raízes nesse processo cínico, cético e desconstrutivo, seja no que diz respeito aos valores e referências tradicionais, seja no que se refere ao trabalho da pesquisa científica. Neste caso, o ato de minar e desqualificar expressões culturais consolidadas ou descobertas inovadoras da ciência é uma maneira de ocultar a própria ignorância. Não possuindo argumentos válidos e racionais para um diálogo aberto e responsável, apelam para o bordão autoritário. O mesmo ocorre, por exemplo, com aquele marido que, incapaz de se contrapor às observações razoáveis da esposa, impõe-se pelo grito, pelo punho, quando não pela faca ou o revólver. Ou seja, a violência costuma ser a arma favorita de quem não dispõe de razão. Sem poder contar com uma autoridade natural, baseada no bom senso e num relacionamento digno, respeitoso e igualitário, predomina o autoritarismo. A falta de cérebro leva ao uso da força bruta.
Em tempos de pandemia e de quarentena, a postura fundamentada no niilismo negacionista tende a desmontar pela raiz qualquer planejamento sério para o combate do Covid-19. A batalha contra o vírus se converte em um cego tiroteio, onde cada um atira por conta própria e a esmo, com o risco de atingir outros soldados que deveriam estar do mesmo lado do front. Além disso, as opiniões pessoais, partidárias, políticas, corporativistas ou ideológicas acabam sobrepondo-se às orientações dos estudiosos especialistas em infectologia. Mais grave ainda! Autoridades que nunca frequentaram uma faculdade de medicina passam a ditar as regras e as medidas, tanto no sentido de fazer apologia de medicamentos sem eficácia assegurada, quanto no sentido de apontar de forma obsessiva e irresponsável um receituário com comprovados efeitos colaterais de risco. No Brasil do governo Bolsonaro, quando a tragédia registra o maior número de mortes, chega-se ao ponto de transformar o Ministério da Saúde em um verdadeiro quartel do Exército, onde os militares substituem a experiência dos técnicos.
Em semelhante cenário, quem é nosso “hóspede inquietante”? O coronavírus ou o governo de plantão? Talvez a perversa combinação de ambos! No momento de juntar as forças contra o “inimigo comum e invisível”, Jair Bolsonaro, seu clã familiar e seus fanáticos seguidores põem-se a brigar com as instituições democráticas: os poderes judiciário e legislativo, por um lado e, por outro, os governadores e prefeitos. Ademais, em lugar de corrigir declarações e atitudes indignas de um mandatário, e que depois são amplamente disseminadas pela mídia, termina por se indispor contra os representantes do jornal, do rádio, da televisão, etc. Em termos figurados, é como tentar apagar o fogo soprando na fumaça. Os meios de comunicação social, na verdade, são a caixa de ressonância do que vem da fonte, que são os fatos e imagens. E estes, por sua vez, há tempo refletem uma realidade de polarização. Se a polarização se revela como uma usina de intrigas, ódio, mentiras e ataques; se ela insiste em desconhecer o diálogo e parte sempre para o confronto; e se busca obsessivamente um inimigo para consolidar a própria natureza – o que mais pode transmitir a imprensa, seja ela falada, escrita ou televisionada!?...
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 18 de junho de 2020

segunda-feira, 1 de junho de 2020

ESTAMOS TODOS NO MESMO BARCO?


Definitivamente não! Ou melhor, sim e não.  Se de um lado é verdade que habitamos todos o mesmo planeta Terra, de outro também é certo que uma minoria muita rica e poderosa tem condições infinitamente melhores para se defender. Defender-se de quê? Em primeiro lugar, da pandemia do Covid-19 que devasta o mundo inteiro e que pode matar mais de meio milhão de pessoas. Mas defender-se igualmente dos efeitos nefastos causados pela deterioração do meio ambiente, pela contaminação do mar, do ar e das águas, pelo aquecimento global, pelo ritmo alucinado de produção, consumo e descarte imposto pelo sistema capitalista.
No caso da pandemia do coronavírus, a constatação tem sido simples e imediata. Inicialmente, a doença começou a ser disseminada pelos que têm condições de viajar, muitos deles turistas ou técnicos especialistas das multinacionais. A sua letalidade, porém, verificou-se maior entre os pobres e os negros, as minorias étnicas e os imigrantes, com destaque para grande número de indocumentados “escondidos nos porões da sociedade” (p. ex., Massachussets, Califórnia e Flórida, USA, além de vários países da Europa). Embora o vírus chegue pelos aeroportos e cruzeiros, é nas favelas e periferias que esse “inimigo invisível” ceifa mais vidas. Conhecemos o caso da patroa que contraiu a doença e contagiou a empregada doméstica. Enquanto esta última veio a óbito, a outra sequer desenvolveu os sintomas. Ou seja, o nível de vida e a boa nutrição das classes altas não apenas confere uma armadura mais saudável contra os ataques do vírus, mas também lhes abre prontamente o acesso ao sistema de saúde e a um tratamento mais digno. Estamos todos no mesmo barco, mas em condições profundamente desiguais.
Vale o mesmo diante do vírus do lucro e da acumulação capitalista, dois motores que movem a economia globalizada. A ambição descontrolada pelo dinheiro e o poder – irmãos gêmeos que se protegem e fortalecem reciprocamente– há séculos vem destruindo os ecossistemas, em nível regional, bem como a natureza e o todo meio ambiente, em nível universal. A Carta Encíclica Laudato Si’, publicada em maio de 2015 pelo Papa Francisco consiste, ao mesmo tempo, em uma testemunha e uma denúncia dessa destruição irreversível. Os resultados se manifestam no fenômeno das catástrofes extremadas, tais como estiagens prolongadas e inundações, frio e calor cada vez mais acentuados, furacões e ciclones, e assim por diante.
Também neste caso, embora estejamos todos no mesmo barco, torna-se escandaloso e estridente o desequilíbrio entre pobres e ricos. Enquanto os primeiros representam as vítimas imediatas de cada catástrofe, perdendo seus entes queridos ou tendo que fugir da terra em que nasceram, os segundos apelam para uma série de mecanismos de proteção. O dinheiro e, através dele, a força e influência política os defendem. Têm condições de se refugiar nos “arquipélagos da riqueza”, pagando preços elevados. Daí o alerta do pontífice segundo o qual, além de preservar “nossa casa comum”, torna-se urgente distribuir de forma justa e equânime as riquezas produzidas pelo trabalho de todos. Basta com a “globalização da indiferença” – diz o Papa – fonte de enormes assimetrias sociais, e que “exclui, descarta e mata”.
Vale concluir com as palavras de Richard Melville Hall (nome artístico de Moby), conhecido mundialmente como o astro do rock e da música eletrônica: “Um dos aspectos mais frustrantes do que estamos vivendo como espécie é que todo o problema que enfrentamos é um problema que nós mesmos criamos. A receita para transformar nosso planeta em um paraíso é algo muito fácil: basta parar de usar petróleo e carvão, de derrubar as florestas tropicais, de usar animais como alimento e de gastar mais dinheiro em defesa do que em educação. Acho que podemos consertar tudo. Nós só decidimos não consertar. Espero que a pandemia nos faça ver que o ‘velho normal’ poderia ser até confortável, mas também era totalmente insustentável. A minha esperança é que tenhamos logo um ‘novo normal’” (Cfr. ESSINGER, Silvio, in: O DJ que não vai a boate e a raves, Jornal O Globo, 25/05/2020, segundo caderno, pág. 1).
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 1º de junho de 2020