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sexta-feira, 1 de março de 2019

ESTADO PROVIDÊNCIA


A expressão “Casa Grande & Senzala”, cunhada pelo sociólogo Gilberto Freire, representa não apenas uma metáfora da tradição social, econômica, política e cultural brasileira. Ela é muito mais que isso. Consiste numa verdadeira chave de leitura para entender a história do país, bem como sua situação atual. Explica, ainda, combinada com outros fatores, o que se poderia chamar de Estado Providência. Embora com algumas semelhanças, difere do “Welfare State” (Estado de bem-estar social), inspirado na teoria do economista inglês John M. Keynes.
Trata-se antes do Estado herdado da monarquia da Península Ibérica, o qual, instalado na corte e na Casa Grande, provê as necessidades mínimas da Senzala. Diferentemente do keynesianísmo, neste caso o contraste não está entre os ganhos dos empresários e a intermediação do governo, de um lado, e, de outro, os direitos dos trabalhadores. O contraste é ao mesmo tempo mais sutil e mais estridente. O embate se dá entre os privilégios da Casa Grande e os favores da Senzala. Favores não são direitos, e menos ainda adquiridos; são migalhas, sobras que caem da mesa rica e farta. Ilustra isso o costume de jogar aos moradores da Senzala os miúdos do porco, de onde deriva a nossa feijoada, prato típico que hoje faz sucesso na culinária brasileira. Além disso, os favores/migalhas vinham subordinados ao humor dos senhores de engenho, em cumplicidade com as autoridades palacianas que os representavam.
Isso significa que, em tempos de crise, de tensões e conflitos abertos, os favores acabam sendo facilmente substituídos pelo tronco, o chicote, a polícia ou até mesmo o exército. Prova disso foi a revolta dos escravos negros sob o comando de Zumbi, no quilombo dos Palmares. Foram necessárias diversas expedições militares para exterminar os revoltosos. O Estado Providência, de raiz ibérica e transplantado para a Terra de Santa Cruz (e outros países), nutre e tutela os escravos para melhor desfrutar sua força de trabalho; distribui sobras para controlar as energias, mas, ao mesmo tempo, não hesita em usar a repressão para conter os ânimos exaltados, ou as descargas elétricas que podem incendiar as habitações precárias da Senzala.
Talvez o caudilhismo latino-americano e caribenho tenha algo a ver com o Estado Providência. O mesmo se poderia afirmar do milenarismo e do cangaço. “A miséria e a fome fazem nascer santos e bandidos”, escreve Jorge Amado. O governo de Getúlio Vargas e a ditadura militar constituem duas boas ilustrações do que se entende por Estado Providência. No cruzamento dessas figuras – nacional estatista, caudilho, jagunço e milenarista - não é difícil identificar a noção de salvadores da pátria. Mudam as motivações ocultas e os meios, mas os horizontes permanecem nebulosamente indistintos. Em geral, o salvador da pátria tende a rejeitar as instituições, movimentos e organizações intermediárias, apresentando-se às massas e à nação como a melhor ou a única alternativa. O verniz e a retórica do populismo dão-lhe uma certa legitimidade ilícita, isto é, para além da lei.
Se o governo Bolsonaro, a exemplo de outros eleitos nos últimos anos, se encaixa nesse quadro, então cabe a pergunta: até que ponto seu projeto de Reforma da Previdência tem a coragem de cortar os privilégios da Casa Grande? A Reforma tem instrumentos para uma correção social dos desequilíbrios? E se as respostas forem afirmativas, o atual governo tem munição e forças suficientes para aprová-la na Câmera e no Senado? Terá como superar alguns vícios e impasses que vigoram há séculos no Estado Providência? Tais como: o corporativismo dos servidores públicos, que sabe como mostrar unhas e dentes para defender os próprios interesses; as manobras de representantes das forças armadas, cujo projeto de reforma, não por acaso, ficou para ser apresentado mais tarde; a prática da barganha politiqueira entre os poderes Executivo e Legislativo, o chamado “balcão de negócios”, para sequer falar do poder Judiciário. A aposta está sobre a mesa, ou melhor, no palco do Congresso Nacional. Mas as forças ocultas e obtusas já começam a fazer ouvir suas vozes, por enquanto sussurradas, depois veremos.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio de Janeiro, 28 de fevereiro de 2019

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