O tempo litúrgico da quaresma nos convoca ao deserto. Deserto representa sempre um conceito ambíguo, com múltiplos e distintos significados. Por uma parte, refere-se ao um espaço estéril e despovoado, marcado pela ausência de qualquer espécie de vida. Nele, ao longo dos séculos, circulam caravanas de comerciantes, povos nômades e tribais, com um modo de convivência próprio. Nele também, periodicamente, costumam retirar-se místicos e anacoretas, vivenciando experiências pessoais de meditação.
Por outra parte, desde um ponto de vista urbano, o conceito de deserto se confunde com o de multidão, pois esta última por vezes rima com solidão. De fato, as multidões anônimas das grandes metrópoles constituem o que se poderia chamar de deserto povoado – demasiadamente povoado e rumoroso! Nesses centros urbanos respira-se um ritmo frenético, onde ruídos, luzes, objetos e cores acompanham os rios de gente que trafegam pelos becos, ruas e praças. Aqui facilmente os encontros se transformam em desencontros, ao mesmo tempo que o diálogo mais parece um desfile dramático de monólogos desesperados.
Tendo presente esses dois aspectos, que significa a convocação quaresmal ao deserto? Trata-se, antes de tudo, da busca de um encontro pessoal consigo mesmo e com Deus. Espaço povoado ou despovoado, o que importa é o cultivo profundo do silêncio e da escuta. Um e outra podem ocorrer no deserto enquanto terra estéril. Quanto maior a esterilidade do terreno, aliás, mais fecundo tende a ser o encontro. A ausência de outro tipo de vida obriga a olhar para o próprio interior. O aparente vazio serve de espelho: favorece a reflexão sobre as relações complexas que a convivência familiar, comunitária e social tece entre as pessoas, bem como sobre a identidade real de cada ser vivo. O retiro em um lugar despovoado, porém, pode igualmente despertar e revelar os ruídos estridentes que os indivíduos carregam dentro de si mesmos, a sua nudez mais íntima, privando-os de um real e eficaz processo de escuta.
Por outro lado, a pressa ruidosa e o consumismo apelativo do universo urbano, hoje majoritário em todo o planeta, esconde não raro um profundo desejo de paz e harmonia. Desejo que passa pela necessidade de criar momentos significativos para ficar a sós consigo mesmo. Não a solidão, mas o cultivo do tesouro formado pelas lembranças vividas. A conclusão é que, tanto o silêncio cheio de ruídos que pode vir de um lugar deserto quanto o ruído prenhe de silêncio da vida urbana agitada, acabam por entrelaçar-se e confundir-se. Isso torna mais complexa, e ao mesmo tempo mais rica, a convocação quaresmal à conversão. Numa palavra, o verdadeiro terreno do silêncio e da escuta não se define pelos limites geográficos, e sim pela atitude e firmeza de quem procura um “tempo de retiro e contemplação”.
Lugar ermo ou povoado, o mais relevante no caminho quaresmal de preparação à Páscoa é a coragem de confrontar-se com a própria nudez, simultaneamente revestindo-a com a graça de Deus. “Quando sou fraco é então que sou forte”, diz o apóstolo Paulo. A consciência da própria fragilidade e das fraquezas que nos afligem descortina os horizontes em uma estrada dupla de reconciliação e reencontro: em direção à misericórdia de Deus e em direção ao outro. Amplia-se, desse modo, primeiro uma compreensão mais serena da condição humana, segundo uma maior aceitação do diferente. Além disso, e de acordo com a temática da Campanha da Fraternidade/2020, abre-se ainda a perspectiva do cuidado diante do próximo, “caído” à margem da estrada e da vida. Cuidado que se volta igualmente para todo e qualquer ser vivo, como também para a preservação do meio ambiente, no sentido de conservar para as gerações futuras as riquezas de nossa Casa Comum. Se a quaresma convoca e conduz ao deserto, este, por sua vez, prepara e aponta os albores da Páscoa, dos “novos céus e nova terra”, como antecipação terrena do Reino de Deus.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 06 de março de 2020
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