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sábado, 29 de fevereiro de 2020

Migração de nordestinos para o ciclo da borracha

“Dava-se, então, o êxodo, mais trágico e numeroso do que o dos antigos hebreus nos domínios da cristandade. Iam caravanas sem fim ao longo da terra em fogo. O sertão ficava abandonado, com suas planuras ígneas e lombas a arderem também. Quem entrasse nele, a trote largo de cavalo, só encontraria destroços, restos das vidas que se foram, esqueletos mirrados e, para além, na linha sangrenta do poente, lá ao fim da terra esburgada, a ameaça de não volver.
Partiam muitos quando soava o rebate para a fuga, mas muitos poucos chegavam à beira do mar redentor. O pó do caminho ia cobrindo, todos os dias, corpos examines de velhos e crianças, que os abutres, mais tarde, viriam devorar. As mães, por vezes, não resistiam a essa marcha aterradora e quedavam-se debruçadas sobre os filhos, primeiro em choro forte, depois com os olhos fixos numa torturante obsessão. Quando a morte se apiedava, já para elas o mundo tinha morrido há muito.
Cada nuvem que se formava era uma promessa, um castelo de esperanças irisadas lá no alto. Mas logo as ameias errantes se desfaziam e o céu voltava a ficar límpido, muito límpido, sem que um só pingo de chuva caísse daquele azul tão puro sobre a terra tão incandescida. De novo desiludidos, os retirantes, vergados ao drama intenso, esfarrapados, sedentos, famintos, alcançavam, um dia, a capital do Estado, que se mirava sobre a riba atlântica; e dali partiam, ainda uma vez, para outra odisseia. Uns rumo ao sul, à terra roxa de São Paulo, onde floria o café; outros, quase todos, cabeça voltada ao Amazonas, esperando que a selva fosse mais generosa para eles do que havia sido para tantos dos seus vizinhos. Era a conquista da fonte que o sertão lhes negava. Era a troca da terra que matava por falta de água, pela terra que matava por ter água em excesso.
Mas ninguém podia ir por seu pé. Pobres de tudo, menos de coração terno, deixavam-se definhar por carência de passagem. Chegavam então os enviados dos seringais, que lhes conheciam as vicissitudes e os levavam em grossa récua. E se não os encontravam em Fortaleza, porque o ano fora ameno, iam recrutá-los mesmo dentro de suas casitas rústicas, por todas as várzeas e colinas do romântico sertão. A ameaça de nova seca e o desejo de um pecúlio, modesto que fosse, submetiam-nos aos engajadores.
Mas, lá longe, mal chegados à Amazônia, o que queriam era voltar. Mesmo os que se haviam arrastado em êxodo, deixando, durante o trajeto, os pais velhinhos em delírio, ou mortos os filhos de tenra idade, não pensavam noutra coisa além do sertão distante. Todas as riquezas da selva e toda a imensidade de sua rede potâmica, que compensava os longos dias de sede, se desvalorizavam quando eles as punham em confronto com o pobre lugarejo em que tinham nascido. A brenha estava cheia da alma humilde do sertão e era ela quem cantava, quem rompia e quem chorava na maranha interminável”.

(Cfr. CASTRO, Ferreira de, A Selva, Guimarães & Cia. Editores, Lisboa, pags. 188-189)

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