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terça-feira, 22 de setembro de 2020

GOVERNABILIDADE LÍQUIDA

Certo, a metáfora que utiliza o adjetivo “líquido” para evidenciar a ruptura do contrato social sobre o qual se ergue o edifício dos “tempos modernos” foi cunhada pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman. Este último, efetivamente, intitula uma série de obras de sua autoria com um determinado substantivo (modernidade, medo, tempos...), seguido daquele adjetivo. Dessa maneira, a concepção de “modernidade líquida”, por exemplo, tem a ver com a falta de referências firmes e sólidas que ajudem a orientar os seres humanos, e suas principais formas de organização, no mundo contemporâneo. Disso resulta que, na sociedade atual, tanto as pessoas quanto as instituições estariam navegando num mar tempestuoso, como barcos à deriva, sem bússola e sem rumo do porto e do farol.

Mas também é certo que já em torno da metade do século XX, Ernest Bloch, filósofo alemão de origem judaica, escrevia em sua obra monumental sobre o que se poderia chamar de “continente ou arquipélago” da esperança: “O que é infinitamente pequeno, bem como a grandeza variável estavam completamente abaixo do horizonte da sociedade grega; o capitalismo, entretanto, fluidificou tanto aquilo que até então era considerado sólido e finito, que a quietude passou a ser pensada como movimento infinitamente pequeno e passaram a ser concebidos conceitos de grandeza não estáticos” (Cfr. BLOCH, Ernest, Il principio speranza”, Garzanti Editore, Milano, 1994, pág. 153). E nada menos que um século antes de Bloch, ou seja, há mais de 170 anos, os também filósofos e alemães K. Marx e F. Engels deixavam registrado na obra O manifesto comunista que “todas as relações fixas e congeladas, com seu rastro de preconceitos e opiniões, ancestrais e veneráveis, são varridas. Novas relações ficam obsoletas antes de se solidificarem. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Tudo o que é sagrado é profanado. Todos precisam encarar com serenidade sua posição social e relações recíprocas. ”

As duas citações, quando combinadas e confrontadas, descortinam uma involução cada vez mais acentuada na desconstrução deste edifício chamado modernidade. Se por uma parte, a metáfora de “sociedade líquida” nos é contemporânea, tentando às vezes exprimir uma das características fundamentais da pós-modernidade, por outra, persiste a sensação de que os laços e relações que a compõem há tempo estão se derretendo, se liquefazendo. Tal sensação, desenvolvida enquanto pensamento racional, sistemático e filosófico, acompanha a própria construção daquele edifício dos “tempos modernos” como legado de leis, contratos e conveniências – o qual, ao fim e ao cabo, desemboca na formação das democracias ocidentais.

Três exemplos desse acelerado processo de ruptura estrutural, seja do ponto de vista econômico e social seja do ponto de vista e político-cultural, são evidentes a olho nu. O primeiro vem da extrema precariedade das relações e dos direitos trabalhistas. Chegamos praticamente ao ponto em que os trabalhadores do mercado informal superam em número aqueles legalizados pelo mercado formal. E mesmo o emprego destes últimos sofre de abalos permanentes. Poder-se-ia afirmar que os empregos, tal como eram considerados pelas gerações passadas, foram abolidos e substituídos por serviços (ou bicos): temporários, vulneráveis e mal remunerados.

Em segundo lugar, decorrente dessa situação “líquida” quanto ao trabalho, sobram por todo lado pessoas desempregadas, subempregadas, desenraizadas e itinerantes. Trata-se de trabalhadores e trabalhadoras que poderíamos chamar de “fluídos”: sem pátria, sem rumo e quase sem endereço fixo. Não possuem qualquer tipo de referência sólida e tanto menos permanente. Não moram, acampam aqui e ali, movendo-se de acordo com os ventos e as migalhas do capital. Mais de 250 milhões de seres humanos, hoje, não residem no país em que nasceram. Isso sem contabilizar os migrantes internos e/ou temporários, os quais, segundo estimativas da ONU, beiram hoje em todo mundo a marca dos 45 milhões de pessoas. A imensa maioria deixa o lugar de nascimento devido à violência, às catástrofes climáticas, à guerra e à pobreza endêmica.

Por fim, cruzando os dois itens anteriores, chega-se a um estado de desigualdade econômica e social que cresce a velocidades assustadoras. Mesmo em tempos de crise e de pandemia (ou justamente por causa disso), o sistema de produção capitalista concentra, contemporaneamente, renda e riqueza de um lado, e exclusão social de outro. Estudos atualizados de Thomas Pikety, em nível internacional, e de Jessé de Souza, em nível nacional, põe a nu esse fosso abissal, e cada vez mais profundo, na distribuição geral dos frutos do trabalho coletivo. Flagrante claro desse desequilíbrio foi o número de pessoas que, no Brasil, procuram o auxílio emergencial de R$ 600,00 por ocasião da pandemia do novo coronavírus.

A esses três exemplos interligados – condições de trabalho precárias, aumento das migrações de massa e disparidade socioeconômica – não seria difícil acrescentar outros fatores que tornam o mundo e a sociedade “líquidos”. Derretem-se com a rapidez do gelo as relações, sejam elas de ordem interpessoal e familiar, comunitária ou social, política ou cultural; derrete-se a confiança entre as gerações, uma vez que uma tem pouco ou nada a dizer à próxima; derretem-se as boas tradições, condenadas juntamente com o “tradicionalismo”; derrete-se, enfim, a vontade e a capacidade de planejar o futuro, pois as carências e lacunas do presente, somadas à ansiedade como doença contemporânea, exigem respostas prontas e imediatas.

O fato é que quando as promessas e os compromissos se manifestam tão precários e efêmeros, também a governabilidade tende a escorregar em areia movediça e a derreter-se. Os governos Trump, nos Estados Unidos, e Bolsonaro, no Brasil, são testemunhas estridentes dessa fluidez mórbida e doentia. Dizer e desdizer, fazer e desfazer, prometer e descumprir – coisas que já eram comuns na prática política, tornaram-se o arroz-com-feijão diário. A exceção virou regra! Derreteram-se igualmente a ética e os critérios de um mandato sério e comprometido com o bem-estar do país. Rompeu-se a ponte entre a população como um todo e seu representante mais elevado, o qual passa a governar para a seita de seus seguidores fanáticos. E mais, tenta-se a todo custo fritar e derreter os canais e instrumentos, os órgãos e instituições, os mecanismos e ações de um regime democrático. Ataques e calúnias, impasses e entraves multiplicam-se a todo momento. Espinhos e pedras de tropeço atentam contra uma boa e sadia gestão.

E isso deixando de lado a temática ligada ao papel relevante e indispensável dos meios de comunicação social, da pesquisa e da ciência, como também da arte e dos artistas. Deixando de lado, ainda, a polêmica em torno das “fake news” e da Internet, em particular, e da revolução informática e cibernética, em geral, pois aí entraríamos em outro capítulo, o que requer uma reflexão bem mais ampla, específica e especializada.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM - Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2020

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

POR QUE GRITA A MINHA GENTE?

Por que trabalha, sofre e luta a minha gente?

Por que geme, chora e se organiza a minha gente?

Por que canta e dança, luta e festeja a minha gente?

Por que minha gente insiste em viver e não apenas sobreviver?

Por que se levanta e grita a minha gente no dia 7 de setembro?

 

A minha gente grita porque é vítima de exclusão social,

A minha gente grita porque quer ser protagonista do tempo,

A minha gente grita porque precisa se fazer ver e ouvir,

A minha gente grita, na pandemia, pelas janelas e varandas de suas casas,

A minha gente grita, desde sempre, pela vida em primeiro lugar,

A minha gente grita no Dia da Pátria porque jamais esqueceu a cidadania!

 

A minha gente grita contra a pobreza, a miséria e a fome,

A minha gente grita contra o racismo, o preconceito e a discriminação,

A minha gente grita com a repressão, a exploração e o autoritarismo,

A minha gente grita contra todo tipo de tirania, ditadura e império,

A minha gente grita contra os atentados ao processo democrático!

 

A minha gente grita pela dignidade, a justiça e os direitos no trabalho,

A minha gente grita pela terra onde possa plantar, colher e se alimentar,

A minha gente grita pela terra onde erguer um teto para proteger a família,

A minha gente grita pela defesa do ar, das águas, do meio ambiente e da Terra,

A minha gente grita para deixar a arquibancada da história e entrar em campo,

A minha gente grita para ter vez e voz na participação da utopia do Reino!

 

A minha gente grita em solidariedade os infectados e afetados pela pandemia,

A minha gente grita pelos milhões de mortos e pelas famílias enlutadas,

A minha gente grita na voz das mulheres sujeitas à violência doméstica.

A minha gente grita na voz dos negros que há séculos “estão privados de respirar”,

A minha gente grita na voz dos povos indígenas e das comunidades quilombolas,

A minha gente grita na voz dos migrantes, das crianças e do povo de rua,

A minha gente grita na voz de todas as minorias “invisíveis e descartáveis”!

 

A minha gente grita do fundo dos porões abandonados e esquecidos,

A minha gente grita a partir dos longínquos grotões onde impera o descaso,

A minha gente grita desde as periferias relegadas a uma cidadania de segunda classe,

A minha gente grita no campo e na cidade por saúde, educação, luz e paz;

A minha gente grita aos céus e aos deuses pela unidade de todos os povos,

A minha gente grita pela construção conjunta de “nossa casa comum”!

 

A minha gente grita por um sistema econômico onde a vida tenha primazia sobre o lucro,

Onde a produção e a produtividade importem menos que a distribuição dos frutos,

Onde idosos e crianças representem nossa memória viva e nosso futuro solidário,

Onde todos, homens e mulheres, possam fazer parte do grande mutirão pela vida,

Onde a terra, o teto e o trabalho sejam direitos sagrados e assegurados!

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM

Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2020

 

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Catástrofes agravam situação de migrantes e refugiados

 

Tomemos como ponto de partida duas notícias convergentes sobre a questão migratória em nível global. Primeiramente, de acordo com uma jornalista de um dos principais periódicos brasileiros, “a explosão que destruiu Beirute (...) atingiu em cheio os milhares de sírios que vivem na cidade. País com maior número de refugiados no mundo, proporcionalmente ao número de habitantes, o Líbano abriga cerca de 1 milhão de sírios, que representam um sexto da população do país. Dos mais de 200 mortos pela explosão no porto, no dia 4 de agosto, pelo menos 34 eram refugiados, segundo a agência da ONU para o tema (ACNUR). O número pode ser maior, já que ainda há sete desaparecidos e 124 ficaram feridos, 20 deles com ferimentos graves. Cerca de 200 mil refugiados vivem na capital libanesa” (Cfr. MANTOVANI, Flávia, portal da Folha de São Paulo, 13/08/ 2020).

A segunda notícia chega-nos do norte da África. “Em Zuara [Líbia] os migrantes ‘saudáveis’ são levados para a prisão. Os feridos são deixados ‘livres’, mas sem tratamento. A seleção é feita pelo estado de saúde. Os sobreviventes que ainda conseguem ficar de pé vão para a prisão. Aqueles cobertos de feridas e queimaduras, precisando de atenção e cuidados, são largados à própria sorte para apodrecer. Nas imagens que chegaram do sul de Trípoli pode ser vista, entre outros, um menino da Eritreia, único sobrevivente de um grupo de cerca de dez compatriotas, que conseguiu salvar das chamas o documento com o qual havia sido registrado na Líbia, na agência da ONU para refugiados. Com isso no bolso esperava obter na Europa a proteção que o direito internacional oferece a que, como ele, foge da violência e da perseguição. No início eram 85, agora 40 estão vivos. Vivos, mas não salvos” (Cfr. Reportagem de Nello Scavo, publicada pelo jornal Avvenire, em 22 de agosto de 2020, reproduzida pelo portal do IHU, 24/08/2020, com tradução de Luisa Rabolini).

Ambas as reportagens – vindas respectivamente do Líbano e da Líbia – centram o olhar sobre os migrantes e refugiados. De início e de imediato, podemos verificar que uma situação que já era extremamente precária e vulnerável, agrava-se à máxima potência seja com uma catástrofe inesperada, no caso do Líbano, seja com os efeitos pérfidos e perversos da pandemia, como no caso da Líbia. Mas os desastres de caráter natural ou humano poderiam ser repetidos às dezenas, bem como suas consequências nocivas para quem erra pelas estradas do êxodo, do exílio ou da diáspora. Os que se vêem repentinamente privados de um solo próprio, de um grupo familiar ou de uma terra que possa ser chamada de pátria, toda ameaça contém um duplo risco. Primeiro, o perigo de encontrar fechada a porta que dá acesso ao trabalho e ao sustento da família; segundo, o perigo de expatriação, sempre suspenso sobre a cabeça como uma guilhotina.

Em outras palavras, diante de uma explosão acidental (ou não?!...), como a de Beirute; em meio a uma pandemia que estende por todo o planeta seu rastro de mortos, feridos e enlutados; ou por ocasião de uma estiagem ou inundação – o imigrante tende a ser sempre o primeiro sacrificado. A ameaça será redobrada se o mesmo não estiver em dia com a documentação. No sentido de salvaguardar a população local, as autoridades, a imprensa e a própria opinião pública não hesitarão em se desfazer do “estranho e intruso”. Por toda a parte, a ideologia da segurança nacional representa o pano de fundo sobre o qual se debatem as leis migratórias. Disso resulta que o migrante ou refugiado serão irremediavelmente escolhidos como os bodes expiatórios do momento. E o será com maior razão quando se tratar de desordens econômicas, sociais e políticas. A situação de desemprego, subemprego e trabalho informal que deverá seguir-se à pandemia pesa duplamente sobre os estrangeiros de todo mundo, a menos que se trate de pessoas que já recriaram suas raízes nos países de destino, ou de técnicos, consultores e altos funcionários das empresas transnacionais. O contexto da pós-pandemia prevê caminhos áridos e íngremes para todos os cidadãos em condições vulneráveis, mas reserva dificuldades mais graves para as multidões de sem pátria que se movem pelo mundo afora.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro 1º de setembro de 2020