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quarta-feira, 27 de maio de 2020

BOLSO NOSSO DE CADA DIA


Em termos figurados, o bolso, a balança e o espelho são os “órgãos” mais sensíveis do corpo humano. Determinam, respectivamente, o status social, as linhas da estética e o grau da beleza. No transcorrer lento e longo desta pandemia do Covid-19, os dias, semanas e meses se revelam aparentemente infinitos. De forma inadvertida, afloram preocupações inéditas com detalhes que, em outras circunstâncias, passariam despercebidos. Tornamo-nos todos um tanto quanto mais irritadiços e narcisistas, tanto nas relações com os outros quanto no cuidado conosco mesmos. Certas “picuinhas” ganham relevância desproporcionada.
Talvez seja por isso que o presidente Bolsonaro, atento às necessidades urgentes da seita que o idolatra, insiste em abrir os serviços de academias, cabeleireiros e salões de beleza. Atitude terrivelmente evangélica: “deixem que os mortos enterrem seus mortos” (Mt 8,22). Quanto aos vivos, têm que continuar a labuta. No ponto de vista bizarro do capitão e seu clã de fideístas, 70% da população deve ser infectada e alguns “velhinhos” devem mesmo morrer. E daí!? Lamento, que posso fazer!? Se isso tem que acontecer, que seja o quanto antes. O que importa é retomar de imediato a vida normal: abrir lojas e fábricas, sair às ruas, fazer compras, voltar a trabalhar. Afinal de contas, a roda da economia tem que girar, não pode ficar parada por mais tempo. O pessoal fechado em casa está com a geladeira vazia, os filhos não têm o que comer. Além disso, “o meu governo” não pode ser prejudicado (leia-se “a minha reeleição”).
Sobem de tom os ímpetos e impulsos repentinos do presidente. Acabam por tornar-se cada vez mais estridentes e obsessivos, contagiando os fiéis cegos e fanáticos. Os desejos ocultos do capitão, inconfessados e inconfessáveis, vestem-se de verde e amarelo, ganham as praças e as redes sociais. Transfiguram-se em necessidades urgentes do povo, para quem o Messias diz ter sido enviado (e eleito). Daí às manifestações agressivas contra os demais poderes – judiciário e legislativo – o passo é curto. Sinistro, perverso e perigoso. Pouco importa se o SUS entra em colapso, se os agonizantes disputam um leito numa fila dolorosa e macabra, se alguns sequer buscam os hospitais e terminam por morrer em casa, se os profissionais e agentes de saúde estão sobrecarregados, se os serviços funerários e os cemitérios exibem cenas apocalípticas e se o número de infectados e mortos segue em aumento progressivo – melhor sacrificar a vida de uns poucos milhares no altar sagrado que é o projeto da “nova política”.
Nova política que, de resto, nunca antes na história deste país se revelou tão velha, tão corrupta e tão patrimonialista. Está em jogo a blindagem judicial contra o impeachment e em favor de uma prole viciada e cada vez mais indisciplinada. Volta com força redobrada o famigerado toma-lá-dá-cá, no sentido de consolidar, nos bastidores e corredores do Congresso Nacional, o tal do Centrão. Na verdade, um arremedo reciclado, desajeitado e piorado da antiga prática que consiste em oferecer cargos, benesses e privilégios como moeda de troca por votos e apoio político. E com a mesma força redobrada volta igualmente a prepotência intervencionista, seja na relação com Ministérios, mesmo à revelia dos representantes das respectivas pastas, seja no controle da Polícia Federal, também à revelia no Ministro da Justiça.
Como se já não bastasse o flagelo do Covid-19, temos que suportar o vírus do negacionismo, do deboche, da avalanche de fake news e do autoritarismo. Do ponto de vista da geopolítica, bem como das relações com os agentes da economia mundial globalizada, o presidente Bolsonaro vem comprometendo o bolso nosso de cada dia. Não se trata apenas de um jogo de palavras. A confiança dos investidores nacionais e internacionais vai de ladeira abaixo, o que se reflete na fuga de dólares e perda de poder efetivo do real. Em meio à instabilidade política, crescem dúvidas e incertezas sobre o risco Brasil. Semelhante cenário traz sombras de insegurança sobre o trabalho, o emprego e a migração forçada. Felizmente, através de iniciativas populares e solidárias, emergem aqui e ali pequenas luzes de projeto de economia alternativa.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 25 de maio de 2020