Os
tempos modernos, entre outras coisas, caracterizam-se pela velocidade, pelos
ruídos, pelo consumo e pelo descarte fácil. A relação com as coisas e com as
pessoas são dominadas pela pressa. As agendas e atividades, não raro, superam o
espaço de que a natureza nos dispõe. Os meios de transporte, a Internet e a
eletricidade aboliram o tempo e a noite. A prática de alguns supermercados e
postos de gasolina – aberto 24h por dia – torna-se uma espécie de metáfora
também para as ações dos seres humanos. Estamos permanentemente conectados,
submetidos a um bombardeio estridente de notícias, publicidade e apelos.
Semelhante correria, como não podia deixar de ser, dispersa e desgasta nossa
atenção. A pandemia e a consequente quarentena, em pleno tempo da quaresma
impõe a necessidade urgente de a) resgatar o núcleo da existência, b) cultivar
a memória e a utopia e c) manter os olhos fixos no foco.
Resgatar o núcleo
da existência.
Qual o núcleo mais íntimo de cada um de nós? Qual o miolo de nossas
preocupações e atividades diárias? Por que a pressa, a ansiedade e a busca?
Vale iniciar com uma máxima: quando nos sentimos atropelados pela velocidade
dos tempos que correm é sinal de que estamos à procura de nós mesmos. Não nos
damos conta que, por vezes, o melhor de cada pessoa encontra-se na sua casa.
Quantas pessoas deixam o lar, a família e a vizinhança na tentativa de
encontrar o sentido oculto e misterioso de suas vidas! Os livros de Paulo
Coelho, entre outros escritos contemporâneos, expressam bem esse enigma. Alguns
personagens correm mundos e fundos atrás de uma razão para continuar a existência.
Ao final de tantos caminhos tortuosos, de tantos labirintos desconhecidos e de
tantos encontros – com frequência acabam por tropeçar no beco sem saída do
desencontro.
Qual
a conclusão? Depois de múltiplas andanças e adversidades, descobrem que o
tesouro que tão desesperadamente buscam fora de casa, no retorno, o encontram
juntos aos seus. Mais ou menos com a saga de Dom Quixote, de Miguel de
Cervantes. Após a desvairada travessia pelo mundo afora no vão esforço de
concertar o que está errado, “o cavaleiro da triste figura”, na vigília da
própria morte, descobre que no fundo era “um homem bom”. E ali, nas mãos dos
familiares e amigos deposita o que tem de melhor: a bondade. Quantas energias
gastamos em idas e vindas sem fim ao redor de nosso núcleo mais sagrado! A
reclusão e o retiro desta quarentena forçada, justamente no decorrer do período
quaresmal, certamente nos ajuda a partilhar com aqueles que habitam sob o mesmo
teto o valor mais secreto de que dispomos, o qual, convém não esquecer, é
sempre um dom de Deus no íntimo de nosso ser.
Mas
não é só isso! Se, por um lado, o recolhimento pode servir para conhecer melhor
a riqueza que trazemos em nossas entranhas, num profundo e progressivo
autoconhecimento, de igual modo servirá para um conhecimento das pessoas que
mais de perto convivem conosco. Quantas vezes, no corre-corre cotidiano, deixamos
os familiares para encontrar os amigos, como se para “sentir-se em casa” fosse
necessário deixar a proteção de suas paredes, piso e teto! Ou seja, quantos
buscamos fora o que não encontramos dentro! A pandemia associada à quaresma nos
oferece a oportunidade de descobrir, ao lado das pérolas que nós mesmos
possuímos, o brilho e o calor dos valores que os demais carregam. Este confinamento
pode ser “o tempo favorável” para o encontro recíproco com aqueles que, embora
no dia-a-dia se esbarrem o tempo todo, jamais se encontram. Somente assim
nossas casas deixam de ser meras pensões – onde cada qual entra e sai para
comer e dormir – para se converterem em um verdadeiro lar.
Cultivar a memória
e a utopia. A
trajetória pessoal de cada um, com seus relacionamentos e suas experiências,
representa um poço de recordações: nele há muita água que pode ser
reaproveitada em tempos difíceis. Aliás, nesse poço individual coexistem água e
sede, lições de sabedoria e lacunas de carência. Neste momento de recolhimento,
pouca coisa pode entreter tanto quanto rever e reciclar a própria memória.
Desta última será possível identificar experiências dolorosas que, apesar de
tudo e às vezes contra toda esperança, encontraram solução. Constituem o céu
estrelado e luminoso de nosso passado: pequenas luzes que nos ajudaram a vencer
túneis de dor, sofrimento e escuridão. Também poderemos identificar, a partir
dessas mesmas experiências, os anjos que nos ajudaram a sair do escuro e até do
desespero. Retiro é momento de conversar com os anjos e relembrar as estrelas
que até agora iluminaram nosso caminho. Temos aí um grande acúmulo de
iluminações a serem resgatadas e recicladas, seja no sentido de enfrentar os
embates do presente, seja na perspectiva de manter viva a esperança e a utopia
do futuro.
Não
podemos esquecer, por outro lado, que cada um de nós é, simultaneamente, uma
mescla de água e sede. Nem só água, nem só sede; nem água o tempo todo, nem
sede o tempo todo. Mas essa mistura alternada de água e sede, de lições
aprendidas e de feridas abertas, de doação e carência. No conhecido episódio do
encontro entre Jesus e a samaritana, à beira do poço de Jacó, capítulo quarto
do Evangelho de João, água e sede se encontram. Melhor, dois tipos de água e
dois tipos de sede: água e sede material e água e sede espiritual. Quem no
início revela a própria sede, ao final oferece água viva; e quem no início vem
buscar água com o balde, no final revela sua sede mais profunda e obtém
salvação.
Cabe
a pergunta: quem de fato evangeliza, Jesus ou a mulher? Ou não será o poço?! O
poço é, na verdade, o lugar do encontro entre o finito e o infinito. É nele que
água e sede se fundem numa paz serena e perpétua. Na prática do Mestre,
verifica-se várias vezes a mesma estratégia: abrir poços, muitas vezes
proibidos como este (pois ela é mulher, samaritana e pecadora), e deixar que o
próprio poço oportunize a fusão de água e sede. Disso se conclui que o processo
de evangelização tem sempre mão dupla: quem se diz evangelizador, acaba por ser
também evangelizado; e quem se considera evangelizado, também se revela
evangelizador. O poço/encontro é o lugar da abertura ao outro e do
enriquecimento recíproco.
Manter os olhos
fixos no foco.
Foco se identifica com meta, com horizonte a ser alcançado. Facilmente o foco
tende a se perder em meio às tormentas da existência. Fica sempre a lição de
que quanto mais escura a noite, tanto maior o brilho das estrelas. De igual
modo, embora os tempos sombrios possam nos tornar cegos e surdos, costumam
clarear melhor os contornos da meta e dos valores inegociáveis. A pressão das
dificuldades exige concentrar-se sobre o que é essencial. Na tempestade, a
embarcação se desfaz de tudo que é secundário para salvar o que é
indispensável. As nuvens sombrias e as ondas bravias nos obrigam a fixar os
olhos no alvo, no foco, na meta, em detrimento do luxo supérfluo.
No
meio do redemoinho e da encruzilhada, como mostra Guimarães Rosa em Grande sertão-veredas, surge o convite
inesperado para repensar a trajetória e o objetivo a que nos propomos, bem como
os meios e os fins a serem alcançados. Nesse momento, e em tais condições, seremos
capazes de deixar de lado o que é descartável, para nos ocuparmos unicamente
daquilo que é verdadeiro e absoluto. Quem sou, de onde vim, para onde vou, o
que posso oferecer, do que necessito, que caminho seguir, com quem partilhar a
os passos e os tropeços, para onde vai a história? – eis que emergem com força
redobrada as perguntas fundamentais da existência, aquelas que apontam para o
significado oculto e misterioso da vida humana.
Somos
então catapultados da superfície das águas rasas, em que tranquilamente nos
movíamos, para o subterrâneo das correntes profundas. De uma relativa
indiferença, para um engajamento cheio de compromisso. No turbilhão dos ventos
contrários, não há meio termo, é preciso tomar partido. E nesta altura impõe-se
outra máxima: em terreno minado, recomenda-se não correr nem caminhar em linha
reta. Toda travessia, efetivamente, tem seus reveses. Por vezes faz-se
necessário parar, avaliar, silenciar e escolher qualquer atalho, uma vereda
alternativa. Esta quarentena e o isolamento forçados, em meio à preparação para
Festas da Páscoa, podem ser vistas com outros olhos, positivamente, como uma oportunidade
para rever os valores centrais que nos podem levar ao horizonte fixado e
almejado.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs,
vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 26 de março de 2020
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