O espectro do Covid-19 abateu-se
sobre o planeta da economia globalizada, o que explica a denominação de
pandemia. A sociedade do espetáculo (Guy Debord) e do hiperconsumo. Essas
características, combinadas, acabam por engendrar um individualismo exacerbado.
Daí o paradoxo da modernidade tardia ou pós-modernidade: Ao mesmo tempo que os
meios de comunicação, em especial o universo virtual da Internet, unem o mundo
inteiro, também nos isolam uns dos outros. Criam, simultaneamente, as multidões
metropolitanas e a solidão do apartamento. Erguem-se muros em lugar de pontes.
Nesse contexto de aglomeração e
anonimato, chega o coronavírus como hóspede indesejado. E este inesperado
“inimigo comum”, se por um lado leva as autoridades sanitárias e sensatas a
determinar o distanciamento social, por outro, de alguma forma aproxima as
pessoas que se mantêm afastadas. Outro paradoxo: o distanciamento forçado nutre
o desejo de encontrar-se. Sentindo-nos passageiros de um mesmo barco, nasce,
cresce e desenvolve-se um sentimento de simpatia e solidariedade. É nesta
atmosfera que: a) somos todos convidados ao deserto, b) o deserto conduz ao
outro/diferente, e c) o outro/estrangeiro reconduz ao Pai comum.
Somos
todos convidados ao deserto.
O binômio quaresma e quarentena define bem o conceito material e espiritual de
deserto. Estéril e vazio, esse último quase que nos obriga a uma certa
interiorização. A ausência total de vida ao redor, nos convida a debruçar-nos
sobre a própria existência. Surge então uma encruzilhada, o horizonte se
bifurca em duas direções opostas e contraditórias. Por uma parte, o
recolhimento compulsório e a solidão podem cristalizar ainda mais o
individualismo da sociedade em que vivemos. Somos levados a uma recusa total de
comunicação. Refugiamo-nos como bichos no fundo incomunicável de nosso ego.
Resulta então que isolamento e deserto tornam-se despovoados, chegando ao ponto
da agressão e hostilidade. Não havendo espetáculo, eu me retiro à caverna.
Por outra parte, o mesmo
recolhimento compulsório e a mesma solidão podem levar a uma grande descoberta,
ou redescoberta: o tesouro das recordações que carregamos desde a infância.
Modifica-se completamente o sentido deste tempo de quaresma e quarentena. Neste
caso, o deserto torna-se povoado pelas lembranças que o passado nos fornece.
Com tais pérolas nas mãos, o confinamento converte-se em um tempo privilegiado
para ressegnificar acontecimentos e experiências já vividas. Solidão, silêncio
e deserto conferem luz nova aos fatos negativos, exorcizando, através da
meditação, as sombras que pesam sobre eles. E, ao mesmo tempo, torna mais
relevantes os fatos positivos que, na noite, a exemplo das estrelas, brilham
com mais força. Embora trágica e letal para muitos, a pandemia poder
representar um tempo kairológico para
rever o passado e reorientar os projetos e passos do futuro. Aqui tanto mais
árido é o deserto, tanto mais poderá ser fecundo.
O
deserto nos conduz ao outro/diferente.
No exercício reflexivo de redescobrir o próprio passado e ressegnificar o
sentido da travessia já feita, naturalmente seremos conduzidos a uma outra
descoberta: o outro também carrega consigo um tesouro. Também tem um passado
cheio de aventuras, fracassos, adversidades e sucessos. Outro que pode ser
alguém da família que convive sob o mesmo teto, alguém que trabalha comigo,
alguém que mora nas vizinhanças ou alguém que faz parte da mesma categoria ou comunidade.
Outro de quem, pelos mais diversos motivos ou circunstâncias, talvez eu esteja
distanciado, ou há tempo venha evitando cruzar com ele, e mais ainda venha
evitando trocar com ele um olhar, uma palavra, um gesto. Outro que na rotina
diária acabou se tornando um estranho.
Ao tomar consciência das pérolas
de meu tesouro pessoal, tendo a me surpreender com o tesouro do outro e dos
outros. Por isso, consequentemente, ao ressegnificar as “alegrias e esperanças,
as tristezas e angústias” (Gaudium et
Spes) de minha própria história, tendo igualmente a ressegnificar a
trajetória também acidentada do outro. Semelhante sentimento se fortalece pelo
fato de sabermos que estamos todos no mesmo barco infectado pelo vírus. Na
tempestade da pandemia, a embarcação se tornou mais frágil sobre as ondas
agitadas. E os passageiros, sobre ela, se sentem impotentes e aflitos. Hora de
estender as mãos, estreitar os braços, mesmo que seja à distância. Com isso, a
parada obrigatória e sua coincidência com o tempo da quaresma, com maior
facilidade nos torna propensos à simpatia, desencadeando ações fraternas e
solidárias. Uma vez mais, e paradoxalmente, o afastamento nos avizinha.
O deserto se torna, assim, um
terreno fértil e fecundo para o que o filósofo alemão G. Gadamer chama de
“fusão de horizontes”. Se, de um lado, as histórias pessoais contêm pérolas a
serem redescobertas e ressegnificadas, de outro, o presente nos oprime com um
“inimigo comum” e desconhecido. Que fazer? Como orientar a rota do barco a um
porto seguro? Que farol poderá nos guiar? Que bússola seguir. Nesse momento
difícil, e muito mais trágico para os pobres, os excluídos e os migrantes, o
encontro consigo mesmo e com o outro tende a conjugar esperanças, atividades e
utopias. Em lugar de prevalecer a “minha bússola” – os princípios
individualistas de cada um – deve prevalecer a “nossa bússola” – os princípios
a serem debatidos de forma democrática pelos diferentes protagonistas da
sociedade. O princípio máximo é que a vida deve estar em primeiro lugar, ou
aqueles onde a vida se encontra mais ameaçada.
O
outro ou estrangeiro nos reconduz ao Pai. Chegamos aqui a um dos apelos mais insistentes do
Papa Francisco: superar a globalização da indiferença pela cultura da acolhida,
do encontro, do diálogo e da solidariedade. Já muitas vozes se unem para dizer
que sairemos diferentes desta pandemia. Outras vozes mais otimistas dizem que
sairemos melhores. De fato, na vida pessoal ou familiar, comunitária ou social,
política ou cultural, as adversidades costumam nos imunizar contra o vírus da
inveja e do ciúme, da agressividade e da vingança, da violência e do ódio. Ao
tomarmos consciência de que ninguém está acima da ameaça que hoje pesa sobre a
humanidade, de que se torna necessário unir os esforços para combatê-la e de
que o isolamento temporário deve tornar-nos mais forte e solidários – mais do
que nunca nos damos conta de que todos e todas somos irmãos e irmãs.
Como irmãos e irmãs,
redescobrimos que somos filhos e filhas do mesmo Pai. Mais ainda: sob o chapéu
protetor desta fé e desta esperança, podemos incluir todos os povos e nações,
todos os credos e bandeiras, todas as culturas e valores. Aqui não há
estrangeiros, estamos todos no mesmo barco e na mesma órbita mundializada. Ainda
desta vez, os horizontes de fundem e se abrem ao mesmo tempo. A contribuição
solidária dos cientistas e pesquisadores, das autoridades sanitárias, dos
profissionais da saúde e de tantas iniciativas populares apontam um novo e mais
ambicioso objetivo comum. Ele foi expresso com todas as letras pela Carta
Encíclica Laudato Si’, publicada pelo
Papa Francisco em maio de 2015: o cuidado
com nossa casa comum. O documento, como não poderia deixar de ser, traz
intuição e o empenho de múltiplas e variadas entidades, organizações não
governamentais, movimentos sociais.
O que está em jogo? A economia
globalizada, de orientação liberal, gera ao mesmo tempo a concentração de renda
e a exclusão social. Economia que “descarta, exclui e mata”! Daí a progressiva
desigualdade socioeconômica, com maior gravidade para os países periféricos e
emergentes. No contexto macabro da pandemia, com o binômio quaresma e
quarentena, somos convidados a reorientar os rumos da política econômica em seu
conjunto e em seus detalhes, local e mundialmente. O grande desafio que se
coloca é como retirá-la do piloto automático (“mão invisível”) do lucro e da
acumulação de capital e, de forma democrática, tomar nas mãos as rédeas das
decisões sobre o que produzir, para quem produzir e como produzir. E nisso
privilegiando os extratos da população onde a vida se encontra mais ameaçada.
Esse, e não a especulação financeira, deve ser o critério último das
prioridades a serem escolhidas.
Por quê? Porque tal orientação
político-econômica contraria frontalmente o projeto de salvação que o Pai
reservou para seus filhos e filhas. O deserto, o encontro consigo mesmo e com o
outro nos devolve ao encontro com a ação salvífica do Criador, e daí à prática
solidária.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do
SPM, 31 de março de 2020
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