O tempo litúrgico da quaresma dá
lugar à Semana Santa. Celebra-se a passagem da escravidão para a liberdade, das
trevas para a luz, da morte para a vida. Mas a pandemia Covid-19 ainda paira
como uma nuvem de chumbo sobre boa parte do planeta. O furor letal do vírus
varre vilas, cidades e países inteiros. Fantasmas sinistros e invisíveis
parecem habitar as ruas e praças desertas, ao passo que os vivos, em quarentena
compulsória, se acotovelam como prisioneiros em suas próprias casas. As
autoridades sanitárias alertam para o colapso iminente da rede hospitalar e
seus equipamentos indispensáveis. O combate envolve todo o exército disponível
de médicos, enfermeiras, assistentes e outros. Não poucos desses profissionais
da saúde, também eles contaminados, têm que abandonar a frente de combate.
Na esteira da pandemia, os
índices econômicos sofrem pesadas baixas. E o sofrimento recai primeiramente, e
com maior gravidade, sobre os extratos mais vulnerabilizados da população. No
rastro macabro da pandemia vai se multiplicando, às dezenas e centenas de
milhares, o número de infectados e mortos. Separações inesperadas se abatem
sobre as famílias. A dor dilacera e elas choram seus entes queridos, em muitos
casos não contando sequer com o consolo de acompanhá-los até o cemitério. Nesse
quadro desolador, somos convidados a celebrar a Semana Santa com três olhares
marcados pela fé e pela esperança: a) um olhar para a cruz; b) um olhar para o
sepultamento; e c) um olhar para o túmulo vazio.
Um
olhar para a cruz.
Olhar a cruz é contemplar a face desfigurada do Crucificado. Nela se reflete a
luminosidade do amor em seu grau mais elevado. Contra a violência humana mais
cruel e gratuita, contrapõe-se a também gratuita e suprema bondade divina.
Momento único e colossal na história da humanidade. Aos açoites, às calúnias,
às difamações, ao abandono, aos pregos e à dor atroz da morte em cruz –
reservada aos piores criminosos – Jesus responde com o perdão e ainda procura
justificá-lo pela ignorância a agressividade dos torturadores: “Pai,
perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”. Encontro sem igual, sublime e sem
paralelo. A graça vence o pecado, no processo da vitória da vida sobre a morte.
A vingança do homem-Deus, no mais
vil e dolorido dos sofrimentos, é o perdão para seus algozes! Na cruz,
verifica-se o mais extraordinário contraste: o encontro/desencontro tremendo e
incomparável entre a extrema maldade dos seres humanos, de um lado e, de outro,
a infinita misericórdia do Pai. Semelhante contraste do encontro/desencontro
reflete tamanha grandeza e profundidade que, a exemplo do choque elétrico de
negativo com positivo, uma faísca brilha de forma, ao mesmo tempo, silenciosa e
estridente. Acende-se uma luz nova e intensa. Seu brilho rasga o céu como um
relâmpago e ilumina para sempre toda a face da terra. Fugaz como o raio e
simultaneamente fecundo com a chuva sobre a terra ressequida. Gesto inusitado e
luminoso que antecipa e anuncia a glória da ressurreição.
Mas olhar a cruz é também
contemplar, junto com o Crucificado, a face igualmente desfigurada dos
crucificados pela pandemia Covid-19. São hoje centenas de milhares, milhões se
levarmos em conta a dor dos familiares, parentes e amigos. Dor que varre a terra
como a sombra do vírus, atingido pessoas, lares e relações. A face desfigurada
dos crucificados amplia-se quando os dados, os fatos e as pesquisas indicam os
que se encontram mais vulnerabilizados, tendo sua vida mais ameaçada. Os
números sinistros alertam sobretudo para os “soldados do grande exército”
representado por todos os profissionais do sistema de saúde. Medo, pânico e
terror se espalham com a velocidade do contágio. A incerteza do fim do túnel
aumenta a ansiedade.
Olhar a cruz, a face do Crucificado
e o rosto de todos os crucificados – com os olhos da fé e da esperança – é
dar-se conta que, por mais paradoxal que possa parecer, a mesma luz que se
acendeu no alto da cruz ilumina o rastro devastador da pandemia. A crise e o
sofrimento, na história pessoal ou coletiva, por mais que sejam mensageiros de
tragédias, ajudam a depurar, a purificar, a tornar mais sóbrios e essenciais os
valores culturais e humanos. Nossas atitudes nos momentos de cruz, nas
situações-limites da vida, podem iluminar o processo de superação da morte.
Neste sentido, não seria exagero afirmar que o momento crucial da revelação
salvífica está muito mais no alto da cruz do que na própria ressurreição. A
clamorosa luminosidade que se revela a partir do encontro/desencontro entre a violência
humana e o perdão divino tornar-se-á um farol para toda a trajetória do
cristianismo. Tanto maior é o sofrimento de hoje, tanto mais sólida será a
esperança num amanhã recriado.
Olhar
o sepultamento.
Jesus é retirado da cruz e sepultado. Principais protagonistas aqui são um
grupo de mulheres, junto com José de Arimateia. Por que o extremo cuidado das
mulheres com o corpo do falecido? Por que o cuidado dos familiares, amigos e
parentes com o corpo dos falecidos pela pandemia, apesar das restrições para
velórios e funerais? A resposta é a superação pela fé e pelo amor. Aquela
faísca da cruz, a luminosidade fantástica daquele relâmpago é como uma semente.
A superação da violência com o gesto de perdão constitui uma luz tão viva que
não pode morrer. Da mesma forma, a relação dos que ficaram com os que partiram,
vitimados pelo coronavírus, contém tanta intimidade e tantos segredos que não
pode morrer. Em ambos os casos, os corpos que descem à sepultura de forma tão
trágica são como sementes que haverão de brotar. Essa é a intuição das mulheres
ao sepultarem o corpo do Mestre. Usam óleos caros, panos de linho puro e todo o
cuidado porque esse corpo não pode permanecer nas profundezas da terra. Desce
ao abismo dos infernos para subir aos céus. A exemplo de toda semente, busca a
terra úmida, escura e fria, para depois erguer-se ao azul do firmamento. Cresce
para baixo no sentido de, com vigor redobrado, crescer para o ar livre. E
produzir tronco, ramos, folhas, flores e frutos. É como se, pela luz do madeiro,
Jesus tivesse ressuscitado antes mesmo de morrer!
Também neste caso, não seria
exagero afirmar que o corpo do homem de Nazaré não será propriamente sepultado,
mas semeado. Deve levantar-se do chão com o potencial invisível de toda
semente. Como a flor, a espiga e o edifício – sua memória viva tem raízes no
chão, mas tem simultaneamente tem as asas da brisa suave e confortadora.
Somente assim os ventos da violência e da fúria histórica nada poderão contra
sua obra de salvação. Em outras palavras, e agora concentrando-nos estragos
desoladores da pandemia, tanta morte e tanto sofrimento sobre a face da terra,
não podem ser em vão. Navegar com a bússola da fé e da esperança, apesar da
fragilidade de nossa embarcação comum, e num momento que nos dilacera a todos,
é a melhor forma de manter viva e ativa a utopia do Reino.
Olhar
o túmulo vazio.
Na madrugada do terceiro dia, dizem os quatro relatos evangélicos, vozes
estranhas começaram a circular. Primeiro de algumas mulheres, depois de alguns
apóstolos, e por fim do grupo de apóstolos como um todo. A novidade é
inusitada: o túmulo está vazio! Terão os soldados escondido o corpo de seus
seguidores? Ou alguém o terá roubado? Por que o teriam levado? Ele próprio, o
Crucificado-Ressuscitado, ainda segundo os mesmos relatos, acaba aparecendo aos
seus amigos mais íntimos – no caminho, à beira mar, no lugar onde estavam
fechados por medo das autoridades.
Então as pequenas luzes de sua
pregação, juntamente com a sublime e espantosa luz do ato da crucifixão e morte
começaram a brilhar retrospectivamente. Iluminam suas mentes, aquecem seus
corações e conferem novo significado às suas almas atormentadas. Palavras,
gestos, fatos, milagres, encontros, parábolas e discursos do homem de Nazaré –
antes obscuros, envoltos em névoa e misteriosos – passam a ganhar um novo e
mais profundo sentido. Os seguidores tratam de ressegnificar tudo aquilo que
Ele tinha feito e ensinado. E passam também a reunir-se em pequenos grupos, nas
casas dos primeiros convertidos, para relembrar sua memória do Mestre e
nutrir-se de sua presença viva e eucarística.
Nascem as primeiras comunidades
cristãs. Os discípulos se convertem em missionários (para usar a terminologia
do Doc. De Aparecida). Surgem as cartas neo-testamentárias, além dos Atos dos Apóstolos
e do Apocalipse. A teologia, a eclesiologia e a evangelização ganham terreno e
a Igreja mantém-se firme com os pés no chão e “os olhos fixos em Jesus”
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do
SPM, 4 de abril de 2020
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