José é uma das figuras mais
silenciosas nas narrativas evangélicas. Ao mesmo tempo, porém, aparece sempre
na hora certo e no lugar certo. Quando se trata de proteger a família – mãe e
filho – lá está ele. Verdade que conta com os anjos, mensageiros de Deus, que o
alertam sobre as maquinações dos “filhos das trevas”. Mas, alertado dos riscos
que correm Jesus e Maria, põe-se logo em marcha, seja fugindo para o Egito,
seja de lá retornando. Exerce certo protagonismo na infância de Jesus, porém,
não há registro de sua presença na vida adulta do profeta itinerante. Pouco ou
nada se sabe de seu destino. É lícito supor que também ele estaria ao pé da
cruz, na hora trágica da morte de Jesus!...
Tudo indica que se trata de um
caráter discreto, até mesmo tímido, homem de poucas palavras e de guardar
segredos. Podemos também ver nele um profissional de experiência, o carpinteiro
de Nazaré, trabalhador sério e respeitado. Sinais de uma sabedoria inata que,
em lugar de ações intempestivas frente aos imprevistos da vida (como a gravidez
de Maria, por exemplo), prefere o silêncio, a escuta e a espera. Aqui também
temos a intervenção dos mensageiros de Deus, como atores principais, mas é José
que toma as providências práticas e necessárias. Os seres alados necessitam dos
pés e das mãos de José para garantir a segurança da Sagrada Família.
Não obstante, o humilde
carpinteiro permanece como uma espécie de ator de bastidores. Raramente aparece
em cena. Hoje
diríamos que não parece gostar de holofotes, câmeras e microfones. Como se não
se sentisse à vontade no palco, em evidência diante dos espectadores. Menos à
vontade ainda no cenário dos acontecimentos que, mais tarde, irão se desenrolar
com seu filho adotivo. Se de Jesus se diz que “passou pela vida fazendo bem”,
de José teremos poucas notícias. Não faz barulho, como quem caminha de pés
descalços, silencioso e oculto.
Os estudiosos da Bíblia,
particularmente do Novo Testamento, nos alertam que não podemos olhar para
essas narrativas sobre a infância de Jesus como fatos históricos. Constituem
antes acomodações pós-pascais ao nascimento do Filho de Deus, isto é,
grandioso, misterioso, milagroso. Mas isso não invalida a reflexão sobre a
presença simultaneamente discreta e oportuna de José nesses relatos. Fictícias
ou não, os autores dessas páginas apresentam a figura do “pai adotivo de Jesus”
como alguém com um papel secundário, embora relevante.
Partindo do pano de fundo dos
parágrafos anteriores, surpreende o número de pessoas que, no mundo inteiro e
ao longo da história, foram batizadas com o nome de José. Desnecessário
deter-se em pesquisas para constatar que esse é o nome mais recorrente em
praticamente todos os povos e culturas do mundo ocidental. No judaísmo, no
cristianismo católico ou protestante e nos movimentos religiosos derivados,
José se impõe como nome quase obrigatório de um dos filhos de não poucas
famílias. Mesmo entre os que recebem outro nome de pia, muitos tratam de
intercalar o José como intermediário entre nome e sobrenome.
A surpresa é ainda maior se nos
detemos sobre determinadas manifestações da devoção popular a São José. É sem
dúvida uma das mais disseminadas no universo católico. No nordeste brasileiro,
por exemplo, o dia do santo, a 19 de março, constitui, ao mesmo tempo, um marco
para a carência ou a abundância de chuvas e, consequentemente, um marco para o
novo plantio. De acordo com uma crença popular bastante generalizada, se a
estiagem se prolongar além do São José, o ano tende a ser pobre em feijão,
milho, batata, mandioca, inhame, etc. Chuva no “São José” (19 de março)
significa milho no “São João” (24 de junho). Por outro lado, não são poucos os
religiosos e os sacerdotes que, respectivamente, fazem sua profissão perpétua,
ou se ordenam presbíteros, exatamente nesse mesmo dia.
Como explicar essa dupla
homenagem a São José? Implícita ou explicitamente, é fácil identificar-se com o
José dos Evangelhos. Na sociedade do espetáculo (Guy Debord) em que vivemos e
nos movemos, são poucas as estrelas e incontáveis os planetas. Algumas pessoas
se destacam e brilham com luz própria, mas a imensa maioria apenas reflete o
brilho dos astros mais eminentes. O culto ao corpo e à celebridade se difunde
juntamente com a exacerbação do subjetivismo e do individualismo. Porém, raros
são os senhores Fulano, Sicrano ou Beltrano, e mais raras ainda as beldades,
princesas. A tirania do prazer ou o império do efêmero (para usar expressões de
Jean-Claude Guillebaud e Gilles Lipovetsky), só é possível graças a dezenas,
centenas ou milhares de coadjuvantes. Estes são os Josés, inúmeros e
desconhecidos, com o sobrenome de Silva, Souza, Santos, Oliveira, Gonçalves, e
assim por diante.
No entanto, é preciso estar
atento às pérolas ocultas por trás das mãos calejadas, dos rostos impenetráveis
e das almas rudes desses Josés. Mais do que apoiar-se no sucesso momentâneo e
fugaz, eles seguem com os pés firmes no cotidiano, ainda que cheio de surpresas
e adversidades. Mais do que colher as luzes de espetáculos fulgurantes e efêmeros,
eles procuram lançar sementes no solo úmido e escuro da terra. Mais do que explodir
rojões que sobem e iluminam os céus, mas com a mesma rapidez descem e viram
cinzas, eles acreditam que as mudanças se erguem do chão, através de pequenos
gestos de solidariedade.
Há, contudo, um segredo ainda
mais misterioso, um tesouro escondido, ao qual esses Josés costumam ter acesso
imediato. Sabem pela experiência que a felicidade duradoura não está no
sucesso, no dinheiro, na conta bancária, nos privilégios, nos títulos, no
patrimônio acumulado – mas numa prática diária e silenciosa do bem. Surfar sobre
a onda dos sucessos equivale a surfar nas depressões dos fracassos. Uns são
direta e alternadamente proporcionais aos outros. Expectativas inflacionadas,
tal como os balões de ar, murcham com facilidade e geram frustrações igualmente
infladas. Todo domingo de festa, regado a comida, bebida e embriaguez, é
seguido de uma segunda-feira de ressaca. Se a cruz aponta para a ressurreição,
esta supõe aquela.
Os Josés evitam os saltos de
lebre. Preferem o passo lento e firme da tartaruga ou do jumento, nosso irmão,
diria o nordestino. Depositam sua confiança não nos pulos em falso, mas num
caminhar laborioso, regular e persistente. Sabem como extrair alegrias miúdas
de uma palavra, de um olhar, de um gesto, de uma visita, de um sorriso, de um
beijo, de um abraço, de um toque... E sabem que é nessas mínimas coisas que
reside uma felicidade menos volátil e mais sólida. Aprendem a tirar água de
pedras, a colher flores no deserto estéril, a acender uma vela no meio da
escuridão. Raramente se deixam levar pela aparência de grandiosidade,
desconfiam dos passos largos. Mais ainda: desconfiam da própria energia,
colocando-se nas mãos de uma força que desconhecem, mas em que crêem.
Normalmente não sobem muito
alto, mas tampouco ficam expostos a quedas bruscas. Mais facilmente descem ao
coração da terra e das coisas. Suas palavras costumam ser poucas e
parcimoniosas, mas revestidas de uma sabedoria simples e profunda. Os ditos
populares, ricos e concentrados, nascem, crescem e cruzam as encruzilhadas do
mundo com a persistência dos Josés. São diamantes lapidados com sua experiência
oculta e silenciosa. A própria palavra “José”, concentrada e valorizada como
moeda preciosa, percorre as famílias, os povos e as culturas.
José não deixa de ser, também, a
cara da migração. Esta, de fato, põe em marcha uma grande quantidade de Josés.
O próprio “pai adotivo” de Jesus, esposo de Maria, é testemunha disso. Um novo
olhar aos Evangelhos basta para dar-se conta de como ele, primeiro, por causa
do recenseamento, sobe de Nazaré a Belém, lugar em que se completam os dias de
Maria e ela dá á luz um numa manjedoura, “pois não havia lugar para eles”;
depois de nascido o menino, empreende a fuga para o Egito, protegendo o
recém-nascido da fúria e perseguição de Herodes; dessa terra estrangeira,
retorna à própria pátria, quando a tormenta já tinha se acalmado; por fim, ao
longo da vida, quantas vezes terá se deslocado por causa desse Filho “rebelde”,
o qual insistia que “o seu Reino não era deste mundo”!
Não é essa a trajetória de
inúmeros migrantes? De tribulação em tribulação, de fuga em fuga, de sonho em
sonho, de busca em
busca... Sempre perseguindo o futuro, e este como que sempre
lhes escapando entre os dedos. Josés, milhões de pessoas sem terra nem lugar,
sem rumo nem pátria... Josés a caminho! Josés que, por sê-lo, vivem inquietos e
irrequietos. Rompem obstáculos e fronteiras, abrindo com os ombros curvados os
horizontes de um novo amanhã. É nome comum de um povo acostumado à estrada. Não
costuma figurar entre as famílias milionárias, nobres e aristocráticas,
assentadas solidamente sobre suas fortalezas e suas jazidas de ouro e prata.
Josés são pessoas pouco vinculadas a castelos e fazendas, normalmente habitam tendas.
Conhecendo de perto a transitoriedade e a provisoriedade dos bens terrenos,
podem desenvolver uma ambivalência diante da riqueza: ou se agarram ao pouco
que possuem, lutando com unhas e dentes para ter mais, ou amadurecem um
despojamento que os torna mais leves e livres. Neste último caso, aprendem a
lição de depurar a mala e a alma, para caminhar com um fardo menos carregado de
coisas supérfluas.
Por isso, ao contrário daqueles
que nascem em berço de ouro e a ele se apegam morbidamente, os Josés, e entre
estes os migrantes, tendem a uma maior abertura quanto ao futuro. Estão mais
preparados para as surpresas da história. Especialmente em momentos de crise e
tormenta, enquanto os que moram em castelos e fortalezas correm a se abrigar no
berço dourado e saudoso da infância, os Josés costumam ser impelidos para a
fronteira. Os primeiros, com o coração preso aos seus tesouros acumulados,
lutam para mantê-los a todo o custo; os segundos, encontram-se mais preparados
para enfrentar as pedras e espinhos que a existência apresenta. Tenderão a
rasgar veredas novas, a se aventurarem, pois nada têm a perder. Das duas uma:
ou são tomados pelo medo e a angústia da miséria já experimentada na carne e na
alma, agarrando-se mesquinhamente a qualquer migalha; ou se lançam intrépidos à
luta por algo diferente. Neste caso, a coragem lhes é praticamente inata. Mas
com muita raridade terão seu nome gravado nos jornais. Em geral não são
mártires abatidos a tiro, de nome no calendário, de folha na parede. Vivem,
antes, um martírio de gota a gota, passo a passo, miúdo e diário, onde uma
travessia dura e teimosa substitui as ações vistosas, sensacionais e
espetaculares.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS - Roma, Itália, 19 de março de 2018
Nenhum comentário:
Postar um comentário