O
que foi apresentado aqui não tem necessidade de síntese ou “amarração”.
Proponho, em lugar disso, uma chave de leitura que pode nos trazer algumas
luzes para o momento presente, em que tantos desterrados perambulam pelas estradas
do mundo. Tomemos em mãos o trecho do Evangelho de Mateus em que Jesus se
refere aos “sinais dos tempos” (Mt 16, 1-4).
O Mestre adverte os fariseus e saduceus que, para pô-lo à prova, pedem-lhe
um sinal. Jesus os chama de “geração perversa e adúltera”. Em termos de hoje, poder-se-ia
dizer que eles se revelam bons meteorologistas: olhando o céu, são capazes de dizer
quando vai fazer sol ou quando vai chover. “Mas não sabem interpretar os sinais
dos tempos”, diz o texto.
Sinais
dos tempos
A
expressão “sinais dos tempos”, usada com frequência nos documentos da Igreja,
tem servido como instrumento teórico-pastoral para analisar o momento histórico
em que vivemos. O problema é que, em geral, o acento da análise recai sobre os
sinais negativos, gerando uma leitura não raro derrotista e catastrófica. Ou
erroneamente “apocalíptica”, uma vez que o Livro do Apocalipse não foi escrito
com a finalidade de incutir terror, e sim de revigorar a esperança dos cristãos
em tempos de perseguição. Diferentemente disso, Jesus se refere aos sinais de
que uma Boa Nova está batendo à porta. Sua própria vinda é sinal que o Reino de
Deus irrompe na história!
Disso
se originou a teologia do “já” e do “ainda não”. Ou seja, o Reino já está presente no meio de vós, mas ainda não em sua plenitude. Em outras
palavras, o Reino tem raízes no curso temporal da história, mas sua plena
realização vai para além dela, ultrapassando as coordenadas da ação humana. Não
se confunde com nenhum projeto político-econômico concreto. Em vez disso,
constitui uma instância ético-espiritual que questiona e interpela todo e
qualquer construção social, em nome da aliança de Deus com seu povo, da vontade
do Pai.
Como
conectar essa advertência de Jesus às apresentações realizadas neste encontro?
Na proposta do Mestre, levar em consideração os “sinais dos tempos” equivale a
imortalizar os momentos significativos da existência humana, sejam eles de
caráter individual ou social. Imortalizá-los é torná-los eternos. A vida eterna
não é exatamente a vida após a morte, e sim os gestos tornados inesquecíveis
devido ao seu sentido profundo. A própria experiência pessoal ilustra isso.
Quantas
vezes, após atravessar horas difíceis, situações-limite de sofrimento, de
chegar ao “fundo do poço”, nos surpreendemos constatando que sozinhos jamais
teríamos a força para prosseguir adiante! “Deus me livrou e me ergueu naquela
hora”, dizemos. Quantas vezes ouvimos pessoas do povo afirmar: “Só Deus me fez
sair daquela situação”! E é verdade. Pouco podemos com nossas fraquezas e
debilidades. Na nudez, sentimo-nos expostos e frágeis. Há momentos em que só a
graça de Deus vem em nosso socorro, para que possamos retomar o caminho.
Estamos
diante de momentos e lembranças que não morrem. Ao contrário, vão formando a
própria memória espiritual. Um verdadeiro poço onde se entrelaçam adversidades,
experiências significativas e boa dose de sabedoria. Desse poço podemos extrair
água viva para saciar a sede perpétua que acompanha nossa existência. Momentos
em que o Espírito do Senhor passou pela vida, seja ela pessoal ou coletiva, e
nela imprimiu suas digitais divinas. Sinais dos tempos justamente na medida em
que escapam à corrupção irremediável do próprio tempo. Deixam marcas para a
eternidade.
A
tradição judaico-cristã – Antigo e Novo Testamento – é reconstruída e celebrada
a partir dessas experiências profundas, nas quais o povo sente que “o Senhor
viu a aflição do povo, ouviu seu clamor, conhece seu sofrimento e desceu para
libertá-lo” (Ex 3, 7-10), ou em que “o Verbo se fez carne e armou sua tenda
entre nós” (Jo 1, 14).
A corrupção do tempo
A
verdade é que o tempo é o solo fértil onde a história se desenvolve. Mas o
mesmo tempo devora as marcas deixadas pela história, como se fossem pegadas na
areia. Devora impérios e tiranos, títulos e tronos, cidades e monumentos,
palácios e fortalezas. Devora culturas e civilizações; exércitos, generais e
soldados; mausoléus e túmulos, heróis e bandidos, fundadores e estatutos,
torres e catedrais. O tempo que ergue edifícios e estátuas é o mesmo que os
corrói e os reduz a cinzas. O mesmo que devora povos e nações, culturas e
sociedades, regimes e costumes, poder e riqueza; bibliotecas, livros e palavras.
O
tempo devora também a flor, por mais bela que seja, esparramando ao vento suas
pétalas secas e mortas; o fruto, por mais saboroso que seja, amadurece, fica
podre e cai por terra; a árvore e a própria floresta podem ser devastadas. O
tempo devora a diversidade da fauna e da flora, digerindo uma a uma suas
espécies e subespécies. Devora os recursos que nos oferece a mãe natureza,
justamente quando eles se convertem em “recursos”, isto é, passam a valer como
mercadorias a serem intercambiadas no jogo total e voraz do mercado. Devora
rios e lagos, após ter-lhes engolido as margens e tudo que nelas habita.
O
tempo devora, ainda, a inocência das crianças, as perguntas dos adolescentes, o
entusiasmo dos jovens, a força dos adultos. Extingue em cada um de nós a saúde
e a beleza, a energia e o vigor, a luz e a esperança; debilita-nos até nos
levar à morte. A boca abissal do tempo, com seus dentes afiados, nada poupa
daquilo que o ser humano possui ou constrói sobre a face da terra.
O
tempo consumiu e devorou impérios e cidades inteiras, como Sodoma e Gomorra,
Troia e Machu Pichu, Nínive e Babilônia. A Jerusalém de hoje é bem diversa da
Jerusalém dos saduceus, escribas e fariseus. A Roma de hoje não é a Roma
“eterna” dos Césares. A Bagdá de hoje pouco tem a ver com a esplendorosa cidade
das Mil e uma noites. A Atenas de
hoje não se compara ao berço dos filósofos e da democracia. Istambul ergueu-se
sobre os escombros de Constantinopla. E onde foram parar Jericó, Cartago,
Pompéia, entre tantas outras? Dos impérios, nem falar! Onde estão o assírio, o
persa, o grego, o romano? Por outro lado, o tempo tampouco poupará as
gigantescas e magníficas metrópoles ou megalópoles como Londres, Paris,
Frankfurt, New York, Los Angeles, Montreal, Tokyo, Seus, Dubai!
A memória: fonte de espiritualidade
Entretanto,
o tempo que aparentemente tudo devora, não conseguiu devorar as palavras,
gestos e ações de Jesus de Nazaré. Não conseguiu reduzir ao esquecimento o
perdão lançado do alto da cruz e do sofrimento, e menos ainda a notícia
espantosa de sua ressurreição. Não devorou a missão de seus apóstolos e
discípulos, mesmo em meio às provações e perseguições.
O
tempo não devorou a fé, a força ou a persistência dos primeiros cristãos,
mulheres e homens, trucidados na arena romana pelos dentes de animais ferozes.
Não devorou a reviravolta nas vidas de Paulo de Tarso e Agostinho, e, séculos
mais tarde de Francisco de Assis e Inácio de Loyola. Não devorou o sorriso de
Madre Tereza de Calcutá e de Mahatma Gandhi, a doçura de Terezinha de Jesus e
Ir. Dulce, a coragem de Oscar Romero e Hélder Câmara, Martin Luther King e
Nelson Mandela, a resistência de Margarida Alves, Chico Mendes e Santo Dias da
Silva.
O
tempo não devorou e não devorará a luta oculta e silenciosa de nossos pais e
mães no interior de nossas famílias. E todas as famílias, de um modo ou de
outro, contam com esses mártires ocultos, sem folhinha ou calendário de parede,
mas perseverantes no cuidado com a vida que os rodeia. Tampouco há de devorar a
teimosia e a resistência dos migrantes em seus sonhos, quedas e travessias.
Isso eles nos ensinam. O tempo não devora os sonhos tornados realidade através
da busca e da persistência. Ao contrário, quem muito caminha depura a mala e
depura a alma.
O
caminheiro tende a deixar de lado o que é superficial e secundário, para
concentrar-se naquilo que é essencial e indispensável. Procura aliviar o fardo
para caminhar com mais celeridade e eficácia. De igual forma, o tempo não tem o
poder de devorar as marcas do bem, da justiça e da solidariedade deixadas impressas
no pergaminho da história. Tais marcas resistem incólumes para a vida eterna.
Constituem nossa memória espiritual, memória de Deus agindo nas coordenadas da
história.
As mulheres da sexta-feira santa
Um
punhado de mulheres, vindas da Galileia, corajosamente acompanham Jesus na
subida do Calvário até a cruz. Entre elas está sua mãe Maria, e outras Marias.
São elas que, juntamente com José de Arimateia, preparam o sepultamento do
Homem de Nazaré. Decidem colocar seu corpo num túmulo novo, adquirem os
melhores perfumes e realizam o ritual da cerimônia com uma reverência inusitada.
Por que todo esse carinho e cuidado com o corpo de um condenado à morte maldita
no madeiro da cruz? Verifica-se nesse gesto uma espécie de premonição, uma
intuição feminina profunda de que esse corpo está impregnado de algo de
especial.
Em
certo sentido, mais do que enterrar
Jesus, as mulheres o semeiam na
terra. Esse cadáver representa uma semente que haverá de brotar. Suas palavras,
ações e gestos adquiriram tamanha grandeza que não podem ser devoradas pelo
tempo e pela morte. Seu amor infinito, revelação da misericórdia do Pai, haverá
de ressuscitar com toda força, dando continuidade à Boa Nova do Evangelho. Não
seria exagero afirmar que a ressurreição de Jesus precede sua morte. Ou seja, o
homem que “passou pelo mundo fazendo o bem” (At 10, 38), já havia deixado na
história sinais vivos e indeléveis de vida eterna. Sua imortalidade já se
encontra impressa com caracteres de fogo nos passos e marcas de sua
peregrinação terrestre.
Respeitando
as devidas diferenças, isso vale também para a luta dos migrantes em busca de
uma nova pátria, bem como para a solidariedade daqueles que trabalham para os acolher, proteger, promover e integrar –
usando os quatro verbos do Papa Francisco. É o que vimos e ouvimos sobre as
tarefas nas casas e centros de orientação. Do nordeste ao centro-oeste, do sul
ao norte, do sudeste às fronteiras, do centro à periferia – o SPM imprime suas
atividades com fé e esperança, à luz da Palavra de Deus. Tentando seguir as
pegadas de Jesus, os agentes do SPM, em parceria com os agentes de outras
entidades e movimentos, oferecem aos migrantes aquilo que receberam do Pai.
De
fato, nada temos a oferecer que não venha de Deus, fonte de amor e bondade. Da
mesma forma que a lua reflete a luz do sol, nós procuramos refletir a compaixão
do Senhor pela “ovelha perdida”, pelo “órfão, viúva e estrangeiro”. “Era
migrante e me acolheste” (Mt 25,35). A gente só dá o que não tem. O que tem, a
gente tende a investir para ter mais. Quando nada temos, tornamo-nos abertos à
ação do Espírito que age na história. Age a partir
de nós, apesar de nós ou até mesmo contra nós. Quando nos sentimos de mãos
vazias, o Espírito as complementa com a graça de Deus. “Quando sou fraco, é
então que sou forte”, diz o apóstolo Paulo (2Cor 12, 10).
Conclusão
Tendo
em mãos essa chave de leitura, a expressão “sinais dos tempos” comporta a
multiplicação e a diversidade dessas pequenas luzes que se acendem na escuridão
do momento presente, onde o vaivém dos migrantes torna-se cada vez mais
numeroso, complexo e diversificado. Quanto mais escura a noite, maior o brilho
das estrelas. A chama dessas luzes vem dos migrantes e das ações realizadas
pela causa dessa enorme “multidão dos sem raiz, sem pátria e sem horizonte”, de
tantos “condenados da terra” (Frantz Fanon). São semelhantes luzes que iluminam
as trevas da crise e do caos, e nos impulsionam a “dar sempre um passo à
frente, um passo por menor que seja” (Cfr. As
Vinhas da Ira, de John Steinbeck).
No
terreno árido, a flor costuma ser mais bela; no meio do deserto, o oásis
revigora o peregrino. Cada um desses gestos de acolhida, assistência e
solidariedade, cada esforço no combate ao tráfico de seres humanos e à migração
forçada, cada empenho na defesa dos direitos e da dignidade humana, cada
mudança em favor de uma legislação mais aberta ao “outro, diferente,
estrangeiro” – representa um sinal dos tempos, na exta medida em que se esquiva
à voragem insaciável e corruptiva do tempo, para imortalizar-se na conquista da
vida eterna. Celebrando a memória viva desses sinais, nutrimo-nos e nos
renovamos na espiritualidade do caminho. Deus se faz peregrino e caminha
conosco nas estradas do êxodo, do exílio e da diáspora.
Pe. Alfredo J.
Gonçalves, cs
Florianópolis, Santa
Catarina, 14 de agosto de 2019
SPM-Serviço Pastoral
dos Migrantes
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