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terça-feira, 20 de agosto de 2019

MIGRAÇÃO E SINAIS DOS TEMPOS


O que foi apresentado aqui não tem necessidade de síntese ou “amarração”. Proponho, em lugar disso, uma chave de leitura que pode nos trazer algumas luzes para o momento presente, em que tantos desterrados perambulam pelas estradas do mundo. Tomemos em mãos o trecho do Evangelho de Mateus em que Jesus se refere aos “sinais dos tempos” (Mt 16, 1-4).  O Mestre adverte os fariseus e saduceus que, para pô-lo à prova, pedem-lhe um sinal. Jesus os chama de “geração perversa e adúltera”. Em termos de hoje, poder-se-ia dizer que eles se revelam bons meteorologistas: olhando o céu, são capazes de dizer quando vai fazer sol ou quando vai chover. “Mas não sabem interpretar os sinais dos tempos”, diz o texto.
Sinais dos tempos
A expressão “sinais dos tempos”, usada com frequência nos documentos da Igreja, tem servido como instrumento teórico-pastoral para analisar o momento histórico em que vivemos. O problema é que, em geral, o acento da análise recai sobre os sinais negativos, gerando uma leitura não raro derrotista e catastrófica. Ou erroneamente “apocalíptica”, uma vez que o Livro do Apocalipse não foi escrito com a finalidade de incutir terror, e sim de revigorar a esperança dos cristãos em tempos de perseguição. Diferentemente disso, Jesus se refere aos sinais de que uma Boa Nova está batendo à porta. Sua própria vinda é sinal que o Reino de Deus irrompe na história!
Disso se originou a teologia do “já” e do “ainda não”. Ou seja, o Reino está presente no meio de vós, mas ainda não em sua plenitude. Em outras palavras, o Reino tem raízes no curso temporal da história, mas sua plena realização vai para além dela, ultrapassando as coordenadas da ação humana. Não se confunde com nenhum projeto político-econômico concreto. Em vez disso, constitui uma instância ético-espiritual que questiona e interpela todo e qualquer construção social, em nome da aliança de Deus com seu povo, da vontade do Pai.
Como conectar essa advertência de Jesus às apresentações realizadas neste encontro? Na proposta do Mestre, levar em consideração os “sinais dos tempos” equivale a imortalizar os momentos significativos da existência humana, sejam eles de caráter individual ou social. Imortalizá-los é torná-los eternos. A vida eterna não é exatamente a vida após a morte, e sim os gestos tornados inesquecíveis devido ao seu sentido profundo. A própria experiência pessoal ilustra isso.
Quantas vezes, após atravessar horas difíceis, situações-limite de sofrimento, de chegar ao “fundo do poço”, nos surpreendemos constatando que sozinhos jamais teríamos a força para prosseguir adiante! “Deus me livrou e me ergueu naquela hora”, dizemos. Quantas vezes ouvimos pessoas do povo afirmar: “Só Deus me fez sair daquela situação”! E é verdade. Pouco podemos com nossas fraquezas e debilidades. Na nudez, sentimo-nos expostos e frágeis. Há momentos em que só a graça de Deus vem em nosso socorro, para que possamos retomar o caminho.
Estamos diante de momentos e lembranças que não morrem. Ao contrário, vão formando a própria memória espiritual. Um verdadeiro poço onde se entrelaçam adversidades, experiências significativas e boa dose de sabedoria. Desse poço podemos extrair água viva para saciar a sede perpétua que acompanha nossa existência. Momentos em que o Espírito do Senhor passou pela vida, seja ela pessoal ou coletiva, e nela imprimiu suas digitais divinas. Sinais dos tempos justamente na medida em que escapam à corrupção irremediável do próprio tempo. Deixam marcas para a eternidade.
A tradição judaico-cristã – Antigo e Novo Testamento – é reconstruída e celebrada a partir dessas experiências profundas, nas quais o povo sente que “o Senhor viu a aflição do povo, ouviu seu clamor, conhece seu sofrimento e desceu para libertá-lo” (Ex 3, 7-10), ou em que “o Verbo se fez carne e armou sua tenda entre nós” (Jo 1, 14).
A corrupção do tempo
A verdade é que o tempo é o solo fértil onde a história se desenvolve. Mas o mesmo tempo devora as marcas deixadas pela história, como se fossem pegadas na areia. Devora impérios e tiranos, títulos e tronos, cidades e monumentos, palácios e fortalezas. Devora culturas e civilizações; exércitos, generais e soldados; mausoléus e túmulos, heróis e bandidos, fundadores e estatutos, torres e catedrais. O tempo que ergue edifícios e estátuas é o mesmo que os corrói e os reduz a cinzas. O mesmo que devora povos e nações, culturas e sociedades, regimes e costumes, poder e riqueza; bibliotecas, livros e palavras.
O tempo devora também a flor, por mais bela que seja, esparramando ao vento suas pétalas secas e mortas; o fruto, por mais saboroso que seja, amadurece, fica podre e cai por terra; a árvore e a própria floresta podem ser devastadas. O tempo devora a diversidade da fauna e da flora, digerindo uma a uma suas espécies e subespécies. Devora os recursos que nos oferece a mãe natureza, justamente quando eles se convertem em “recursos”, isto é, passam a valer como mercadorias a serem intercambiadas no jogo total e voraz do mercado. Devora rios e lagos, após ter-lhes engolido as margens e tudo que nelas habita.
O tempo devora, ainda, a inocência das crianças, as perguntas dos adolescentes, o entusiasmo dos jovens, a força dos adultos. Extingue em cada um de nós a saúde e a beleza, a energia e o vigor, a luz e a esperança; debilita-nos até nos levar à morte. A boca abissal do tempo, com seus dentes afiados, nada poupa daquilo que o ser humano possui ou constrói sobre a face da terra.
O tempo consumiu e devorou impérios e cidades inteiras, como Sodoma e Gomorra, Troia e Machu Pichu, Nínive e Babilônia. A Jerusalém de hoje é bem diversa da Jerusalém dos saduceus, escribas e fariseus. A Roma de hoje não é a Roma “eterna” dos Césares. A Bagdá de hoje pouco tem a ver com a esplendorosa cidade das Mil e uma noites. A Atenas de hoje não se compara ao berço dos filósofos e da democracia. Istambul ergueu-se sobre os escombros de Constantinopla. E onde foram parar Jericó, Cartago, Pompéia, entre tantas outras? Dos impérios, nem falar! Onde estão o assírio, o persa, o grego, o romano? Por outro lado, o tempo tampouco poupará as gigantescas e magníficas metrópoles ou megalópoles como Londres, Paris, Frankfurt, New York, Los Angeles, Montreal, Tokyo, Seus, Dubai!
A memória: fonte de espiritualidade
Entretanto, o tempo que aparentemente tudo devora, não conseguiu devorar as palavras, gestos e ações de Jesus de Nazaré. Não conseguiu reduzir ao esquecimento o perdão lançado do alto da cruz e do sofrimento, e menos ainda a notícia espantosa de sua ressurreição. Não devorou a missão de seus apóstolos e discípulos, mesmo em meio às provações e perseguições.
O tempo não devorou a fé, a força ou a persistência dos primeiros cristãos, mulheres e homens, trucidados na arena romana pelos dentes de animais ferozes. Não devorou a reviravolta nas vidas de Paulo de Tarso e Agostinho, e, séculos mais tarde de Francisco de Assis e Inácio de Loyola. Não devorou o sorriso de Madre Tereza de Calcutá e de Mahatma Gandhi, a doçura de Terezinha de Jesus e Ir. Dulce, a coragem de Oscar Romero e Hélder Câmara, Martin Luther King e Nelson Mandela, a resistência de Margarida Alves, Chico Mendes e Santo Dias da Silva.
O tempo não devorou e não devorará a luta oculta e silenciosa de nossos pais e mães no interior de nossas famílias. E todas as famílias, de um modo ou de outro, contam com esses mártires ocultos, sem folhinha ou calendário de parede, mas perseverantes no cuidado com a vida que os rodeia. Tampouco há de devorar a teimosia e a resistência dos migrantes em seus sonhos, quedas e travessias. Isso eles nos ensinam. O tempo não devora os sonhos tornados realidade através da busca e da persistência. Ao contrário, quem muito caminha depura a mala e depura a alma.
O caminheiro tende a deixar de lado o que é superficial e secundário, para concentrar-se naquilo que é essencial e indispensável. Procura aliviar o fardo para caminhar com mais celeridade e eficácia. De igual forma, o tempo não tem o poder de devorar as marcas do bem, da justiça e da solidariedade deixadas impressas no pergaminho da história. Tais marcas resistem incólumes para a vida eterna. Constituem nossa memória espiritual, memória de Deus agindo nas coordenadas da história.
As mulheres da sexta-feira santa
Um punhado de mulheres, vindas da Galileia, corajosamente acompanham Jesus na subida do Calvário até a cruz. Entre elas está sua mãe Maria, e outras Marias. São elas que, juntamente com José de Arimateia, preparam o sepultamento do Homem de Nazaré. Decidem colocar seu corpo num túmulo novo, adquirem os melhores perfumes e realizam o ritual da cerimônia com uma reverência inusitada. Por que todo esse carinho e cuidado com o corpo de um condenado à morte maldita no madeiro da cruz? Verifica-se nesse gesto uma espécie de premonição, uma intuição feminina profunda de que esse corpo está impregnado de algo de especial.
Em certo sentido, mais do que enterrar Jesus, as mulheres o semeiam na terra. Esse cadáver representa uma semente que haverá de brotar. Suas palavras, ações e gestos adquiriram tamanha grandeza que não podem ser devoradas pelo tempo e pela morte. Seu amor infinito, revelação da misericórdia do Pai, haverá de ressuscitar com toda força, dando continuidade à Boa Nova do Evangelho. Não seria exagero afirmar que a ressurreição de Jesus precede sua morte. Ou seja, o homem que “passou pelo mundo fazendo o bem” (At 10, 38), já havia deixado na história sinais vivos e indeléveis de vida eterna. Sua imortalidade já se encontra impressa com caracteres de fogo nos passos e marcas de sua peregrinação terrestre.
Respeitando as devidas diferenças, isso vale também para a luta dos migrantes em busca de uma nova pátria, bem como para a solidariedade daqueles que trabalham para os acolher, proteger, promover e integrar – usando os quatro verbos do Papa Francisco. É o que vimos e ouvimos sobre as tarefas nas casas e centros de orientação. Do nordeste ao centro-oeste, do sul ao norte, do sudeste às fronteiras, do centro à periferia – o SPM imprime suas atividades com fé e esperança, à luz da Palavra de Deus. Tentando seguir as pegadas de Jesus, os agentes do SPM, em parceria com os agentes de outras entidades e movimentos, oferecem aos migrantes aquilo que receberam do Pai.
De fato, nada temos a oferecer que não venha de Deus, fonte de amor e bondade. Da mesma forma que a lua reflete a luz do sol, nós procuramos refletir a compaixão do Senhor pela “ovelha perdida”, pelo “órfão, viúva e estrangeiro”. “Era migrante e me acolheste” (Mt 25,35). A gente só dá o que não tem. O que tem, a gente tende a investir para ter mais. Quando nada temos, tornamo-nos abertos à ação do Espírito que age na história. Age a partir de nós, apesar de nós ou até mesmo contra nós. Quando nos sentimos de mãos vazias, o Espírito as complementa com a graça de Deus. “Quando sou fraco, é então que sou forte”, diz o apóstolo Paulo (2Cor 12, 10).
Conclusão
Tendo em mãos essa chave de leitura, a expressão “sinais dos tempos” comporta a multiplicação e a diversidade dessas pequenas luzes que se acendem na escuridão do momento presente, onde o vaivém dos migrantes torna-se cada vez mais numeroso, complexo e diversificado. Quanto mais escura a noite, maior o brilho das estrelas. A chama dessas luzes vem dos migrantes e das ações realizadas pela causa dessa enorme “multidão dos sem raiz, sem pátria e sem horizonte”, de tantos “condenados da terra” (Frantz Fanon). São semelhantes luzes que iluminam as trevas da crise e do caos, e nos impulsionam a “dar sempre um passo à frente, um passo por menor que seja” (Cfr. As Vinhas da Ira, de John Steinbeck).
No terreno árido, a flor costuma ser mais bela; no meio do deserto, o oásis revigora o peregrino. Cada um desses gestos de acolhida, assistência e solidariedade, cada esforço no combate ao tráfico de seres humanos e à migração forçada, cada empenho na defesa dos direitos e da dignidade humana, cada mudança em favor de uma legislação mais aberta ao “outro, diferente, estrangeiro” – representa um sinal dos tempos, na exta medida em que se esquiva à voragem insaciável e corruptiva do tempo, para imortalizar-se na conquista da vida eterna. Celebrando a memória viva desses sinais, nutrimo-nos e nos renovamos na espiritualidade do caminho. Deus se faz peregrino e caminha conosco nas estradas do êxodo, do exílio e da diáspora.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs
Florianópolis, Santa Catarina, 14 de agosto de 2019
SPM-Serviço Pastoral dos Migrantes

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