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quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Identidade caatingueira: o saber popular construindo conhecimento libertador no semiárido brasileiro


Arivaldo José Sezyshta (Doutorando em Filosofia – UFPB; 
presidente do SPM NE e membro da coordenação da ASA)

Introdução:

Ao trazer a reflexão de que a articulação dos agricultores lança um novo olhar para a grande região do semiárido brasileiro, o texto em questão objetiva:    
- Evidenciar que os agricultores familiares, a partir da percepção da sua alteridade e identidade caatingueira, produzem conhecimento libertador, enquanto patrimônio cultural, capaz de garantir a possibilidade de vida para os empobrecidos;
- Postular a importância da ética ao problematizar sobre o direito à cidadania, historicamente negado ao homem e à mulher do campo;
- Identificar elementos que permitam aprofundar o debate acerca do papel da Filosofia da Libertação Latinoamericana, a partir da experiência das populações caatingueiras.

O Semiárido:

O Semiárido brasileiro compreende uma área de 975 mil km², abrangendo 1.133 municípios do nordeste do Brasil e do norte de Minas Gerais. Nessa grande região, predomina o bioma caatinga, com vidas e paisagens que não existem em nenhum outro lugar do mundo. O povo que aí vive historicamente vem resistido à toda sorte de dominação. Nos últimos anos o agro-hidro-negócio intensificou sua investida, o que tem exigido maior mobilização social dos sujeitos que fazem a agricultura familiar camponesa, responsável pela produção de 70% dos alimentos que chegam às mesas dos brasileiros, organizando-se em redes, a exemplo da Articulação no Semiárido - ASA. Isso tem permitido com que o saber popular, articulado ao conhecimento técnico e científico, construído por universidades e organizações, seja decisivo na luta de resistência e na construção de alternatividades.

Metodologia:

As ações promovidas pela Articulação no Semiárido, ao lançar a semente de um semiárido viável, produzem uma mudança paradigmática, do combate à seca para a convivência com as características específicas dessa região. Neste sentido, aprofunda a questão da identidade dos camponeses caatingueiros, considerando experiências concretas de implementação de tecnologias apropriadas e de intercâmbios realizados com e entre os agricultores. Com isso, ajuda a refletir como o saber popular, quando somado ao saber técnico, produz libertação, valorizando a experiência das comunidades na construção de saberes e conhecimentos, influenciando, decisivamente, na elaboração e na execução de políticas públicas. Esse olhar, que emerge do chão da vida de pessoas reais e de comunidades mobilizadas e resistentes, possibilita recolocar algumas questões éticas, pertinentes à Filosofia Política e fundamentais à continuidade de uma filosofia que se pretenda da Libertação Latinoamericana.

Resultados:

O saber popular respeita o meio ambiente e amplia tecnologias simples de estocagem de água, de sementes, de forragem, de alimento e, sobretudo, de conhecimento. Articulado, fortalece a partilha no lugar da concentração, disseminando as pequenas obras em contrapartida aos projetos faraônicos, valorizando o camponês enquanto sujeito protagonista, portador de direitos, responsável por sua própria libertação, desencadeando outro tipo de desenvolvimento, entendido enquanto envolvimento, sustentado e sustentável, que tem por fundamento a participação, a organização, a educação contextualizada e o empoderamento das pessoas. Politizado, lança a pergunta se seria possível a definição de uma geocultura caatingueira: “assim somos, assim vivemos”, dizem os povos da caatinga. Essa curta definição permite inferir que não se pode construir processos libertadores sem antes assumir, como ponto de partida, o contexto onde se vive, o chão, o território, a história do próprio povo e, para a Filosofia da Libertação, a América Latina. Nesse caso, o chão da reflexão é a história de mais de 500 anos de negação. Partir dessa realidade para poder dizer que todas as pessoas são portadoras de direito, que os povos originários têm uma relação sagrada com a terra, o que faz com que o território seja parte constituinte de seu próprio ser. O que deriva disso é a resistência daqueles que não aceitam se submeter a nenhum tipo de opressão e domínio, ainda que sutil, que os priva de suas terras, de sua cultura e de seus direitos. A luta e a mobilização por acesso à água, entendida não apenas enquanto recurso hídrico, mas como patrimônio cultural do próprio povo, seja de uma pequena comunidade de camponeses no cariri ou no agreste paraibano, seja nas periferias das grandes cidades, estão unificadas, real e simbolicamente, à luta e à mobilização de todo o povo do semiárido brasileiro, bem como aos processos dos povos quilombolas, aos resistentes do Grande Chaco Americano, aos campesinos de todos os países, às comunidades indígenas da Guatemala ou às populações excluídas na Cidade do México ou em São Paulo, em Lima ou Bogotá, pois o envolvimento só pode ser verdadeiro e sustentável se partir da diversidade, contemplando-a em todas as suas fazes. No caso específico da região da caatinga, estamos exaltando a diversidade dos vários cariris, dos muitos semiáridos, como bioma vivo, com sua produção diversificada, com sua biodiversidade, sua gente viva, saindo do silêncio secular, organizando-se para acessar direitos, para que usem da palavra, para que tenham vez e voz e possam dizer o que pensam de si, o que querem para seus povos, o que acreditam ser melhor e mais viável para melhorar sua condição de vida e possam vislumbrar, de fato e de direito, a possibilidade de sair da exclusão, não do consumo, mas da vida digna. Eis aí expressa a síntese da Filosofia da Libertação: a vida humana como fundamental para qualquer fundamento de uma ética possível, cujo ponto de partida é o oprimido, a vítima.

Em resposta à opressão, as vítimas se mobilizam e se organizam. No caso dos povos da caatinga, a partir da luta pelo sagrado direito de beber água limpa. Contudo, para além de um território específico, os direitos e a irmandade dos povos pode ser compreendida a partir da percepção de que as identidades são relacionárias: extrapolam as fronteiras e os estados e a política têm que compreender isso, dialogar com isso se pretende contribuir na construção de um outro mundo possível. O que tem a dizer a política sobre o já proclamado direito à “cidadania universal”, por exemplo? Os povos da caatinga, apesar das suas muitas diferenças e particularidades, ensinam sobre a necessidade do consenso a partir do dissenso, como o amor à terra, comum a todos: é possível aos povos originários possuir a terra necessária à vida digna, desde um contra poder geocultural, que se contrapõe ao poder político imperial. “A que resistir?”, perguntam os povos da caatinga. Talvez essa seja uma pergunta chave para entender a construção das novas identidades, compartidas, solidárias, includentes. “Resistir a tudo o que se contrapõe ao desenvolvimento da vida”, respondem e nos ensinam que é a vida humana o telos de uma filosofia que não seja alegoria do poder vencedor nem contribua com a alienação e a morte, mas, ao contrário, dê sua humilde contribuição à libertação dos oprimidos.

REFERÊNCIAS

ASA BRASIL. ASA: uma caminhada de sustentabilidade e convivencia no semiárido. Recife: [s.e], 2010.

DUSSEL, Enrique. Hacia una filosofia política crítica. Bilbao: Desclée, 2001.

DUSSEL, Henrique. Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes. 2000.

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