Arivaldo
José Sezyshta (Doutorando em Filosofia – UFPB;
presidente do SPM NE e membro da
coordenação da ASA)
Introdução:
Ao trazer a reflexão de que a articulação dos
agricultores lança um novo olhar para a grande região do semiárido brasileiro,
o texto em questão objetiva:
-
Evidenciar que os agricultores familiares, a partir da percepção da sua
alteridade e identidade caatingueira, produzem conhecimento libertador, enquanto
patrimônio cultural, capaz de garantir a possibilidade de vida para os
empobrecidos;
-
Postular a importância da ética ao problematizar sobre o direito à cidadania,
historicamente negado ao homem e à mulher do campo;
-
Identificar elementos que permitam aprofundar o debate acerca do papel da
Filosofia da Libertação Latinoamericana, a partir da experiência das populações
caatingueiras.
O
Semiárido:
O Semiárido brasileiro compreende uma área de
975 mil km², abrangendo 1.133 municípios do nordeste do Brasil e do norte de
Minas Gerais. Nessa grande região, predomina o bioma caatinga, com vidas e
paisagens que não existem em nenhum outro lugar do mundo. O povo que aí vive
historicamente vem resistido à toda sorte de dominação. Nos últimos anos o
agro-hidro-negócio intensificou sua investida, o que tem exigido maior
mobilização social dos sujeitos que fazem a agricultura familiar camponesa,
responsável pela produção de 70% dos alimentos que chegam às mesas dos
brasileiros, organizando-se em redes, a exemplo da Articulação no Semiárido -
ASA. Isso tem permitido com que o saber popular, articulado ao conhecimento
técnico e científico, construído por universidades e organizações, seja
decisivo na luta de resistência e na construção de alternatividades.
Metodologia:
As ações promovidas
pela Articulação no Semiárido, ao lançar a semente de um semiárido viável,
produzem uma mudança paradigmática, do combate à seca para a convivência com as
características específicas dessa região. Neste sentido, aprofunda a questão da
identidade dos camponeses caatingueiros, considerando experiências concretas de
implementação de tecnologias apropriadas e de intercâmbios realizados com e
entre os agricultores. Com isso, ajuda a refletir como o saber popular, quando
somado ao saber técnico, produz libertação, valorizando a experiência das
comunidades na construção de saberes e conhecimentos, influenciando,
decisivamente, na elaboração e na execução de políticas públicas. Esse olhar, que emerge do chão da vida de
pessoas reais e de comunidades mobilizadas e resistentes, possibilita recolocar
algumas questões éticas, pertinentes à Filosofia Política e fundamentais à
continuidade de uma filosofia que se pretenda da Libertação Latinoamericana.
Resultados:
O saber popular respeita o meio ambiente e
amplia tecnologias simples de estocagem de água, de sementes, de forragem, de
alimento e, sobretudo, de conhecimento. Articulado, fortalece a partilha no
lugar da concentração, disseminando as pequenas obras em contrapartida aos
projetos faraônicos, valorizando o camponês enquanto sujeito protagonista,
portador de direitos, responsável por sua própria libertação, desencadeando
outro tipo de desenvolvimento, entendido enquanto envolvimento, sustentado
e sustentável, que tem por fundamento a
participação, a organização, a educação contextualizada e o empoderamento das
pessoas. Politizado, lança a pergunta se seria possível a definição de
uma geocultura caatingueira: “assim somos, assim vivemos”, dizem os povos da
caatinga. Essa curta definição permite inferir que não se pode construir
processos libertadores sem antes assumir, como ponto de partida, o contexto
onde se vive, o chão, o território, a história do próprio povo e, para a Filosofia
da Libertação, a América Latina. Nesse caso, o chão da reflexão é a história de
mais de 500 anos de negação. Partir dessa realidade para poder dizer que todas
as pessoas são portadoras de direito, que os povos originários têm uma relação
sagrada com a terra, o que faz com que o território seja parte constituinte de seu
próprio ser. O que deriva disso é a resistência daqueles que não aceitam se
submeter a nenhum tipo de opressão e domínio, ainda que sutil, que os priva de
suas terras, de sua cultura e de seus direitos. A luta e a mobilização por
acesso à água, entendida não apenas enquanto recurso hídrico, mas como
patrimônio cultural do próprio povo, seja de uma pequena comunidade de
camponeses no cariri ou no agreste paraibano, seja nas periferias das grandes
cidades, estão unificadas, real e simbolicamente, à luta e à mobilização de
todo o povo do semiárido brasileiro, bem como aos processos dos povos
quilombolas, aos resistentes do Grande Chaco Americano, aos campesinos de todos
os países, às comunidades indígenas da Guatemala ou às populações excluídas na
Cidade do México ou em São Paulo, em Lima ou Bogotá, pois o envolvimento só pode ser verdadeiro e
sustentável se partir da diversidade, contemplando-a em todas as suas fazes. No
caso específico da região da caatinga, estamos exaltando a diversidade dos
vários cariris, dos muitos semiáridos, como bioma vivo, com sua produção
diversificada, com sua biodiversidade, sua gente viva, saindo do silêncio
secular, organizando-se para acessar direitos, para que usem da palavra, para
que tenham vez e voz e possam dizer o que pensam de si, o que querem para seus
povos, o que acreditam ser melhor e mais viável para melhorar sua condição de
vida e possam vislumbrar, de fato e de direito, a possibilidade de sair da
exclusão, não do consumo, mas da vida digna. Eis aí expressa a síntese da
Filosofia da Libertação: a vida humana como fundamental para qualquer
fundamento de uma ética possível, cujo ponto de partida é o oprimido, a vítima.
Em resposta à opressão, as vítimas se
mobilizam e se organizam. No caso dos povos da caatinga, a partir da luta pelo
sagrado direito de beber água limpa. Contudo, para além de um território
específico, os direitos e a irmandade dos povos pode ser compreendida a partir
da percepção de que as identidades são relacionárias: extrapolam as fronteiras
e os estados e a política têm que compreender isso, dialogar com isso se
pretende contribuir na construção de um
outro mundo possível. O que tem a dizer a política sobre o já proclamado
direito à “cidadania universal”, por exemplo? Os povos da caatinga, apesar das
suas muitas diferenças e particularidades, ensinam sobre a necessidade do
consenso a partir do dissenso, como o amor à terra, comum a todos: é possível
aos povos originários possuir a terra necessária à vida digna, desde um contra poder geocultural, que
se contrapõe ao poder político imperial. “A que resistir?”, perguntam os povos
da caatinga. Talvez essa seja uma pergunta chave para entender a construção das
novas identidades, compartidas, solidárias, includentes. “Resistir a tudo o que
se contrapõe ao desenvolvimento da vida”, respondem e nos ensinam que é a vida
humana o telos de uma filosofia que
não seja alegoria do poder vencedor
nem contribua com a alienação e a morte, mas, ao contrário, dê sua humilde
contribuição à libertação dos oprimidos.
REFERÊNCIAS
ASA BRASIL. ASA: uma caminhada de sustentabilidade e
convivencia no semiárido. Recife: [s.e], 2010.
DUSSEL, Enrique. Hacia una filosofia política crítica. Bilbao: Desclée,
2001.
DUSSEL,
Henrique. Ética da Libertação na idade
da globalização e da exclusão. Petrópolis: Vozes. 2000.
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