A
expressão “Casa Grande & Senzala”,
cunhada pelo sociólogo Gilberto Freire, representa não apenas uma metáfora da
tradição social, econômica, política e cultural brasileira. Ela é muito mais
que isso. Consiste numa verdadeira chave de leitura para entender a história do
país, bem como sua situação atual. Explica, ainda, combinada com outros
fatores, o que se poderia chamar de Estado Providência. Embora com algumas
semelhanças, difere do “Welfare State” (Estado de bem-estar social), inspirado
na teoria do economista inglês John M. Keynes.
Trata-se
antes do Estado herdado da monarquia da Península Ibérica, o qual, instalado na
corte e na Casa Grande, provê as necessidades mínimas da Senzala.
Diferentemente do keynesianísmo, neste caso o contraste não está entre os
ganhos dos empresários e a intermediação do governo, de um lado, e, de outro,
os direitos dos trabalhadores. O contraste é ao mesmo tempo mais sutil e mais
estridente. O embate se dá entre os privilégios da Casa Grande e os favores da
Senzala. Favores não são direitos, e menos ainda adquiridos; são migalhas,
sobras que caem da mesa rica e farta. Ilustra isso o costume de jogar aos
moradores da Senzala os miúdos do porco, de onde deriva a nossa feijoada, prato típico que hoje faz
sucesso na culinária brasileira. Além disso, os favores/migalhas vinham
subordinados ao humor dos senhores de engenho, em cumplicidade com as
autoridades palacianas que os representavam.
Isso
significa que, em tempos de crise, de tensões e conflitos abertos, os favores
acabam sendo facilmente substituídos pelo tronco, o chicote, a polícia ou até
mesmo o exército. Prova disso foi a revolta dos escravos negros sob o comando
de Zumbi, no quilombo dos Palmares. Foram necessárias diversas expedições
militares para exterminar os revoltosos. O Estado Providência, de raiz ibérica
e transplantado para a Terra de Santa Cruz (e outros países), nutre e tutela os
escravos para melhor desfrutar sua força de trabalho; distribui sobras para
controlar as energias, mas, ao mesmo tempo, não hesita em usar a repressão para
conter os ânimos exaltados, ou as descargas elétricas que podem incendiar as
habitações precárias da Senzala.
Talvez
o caudilhismo latino-americano e caribenho tenha algo a ver com o Estado
Providência. O mesmo se poderia afirmar do milenarismo e do cangaço. “A miséria
e a fome fazem nascer santos e bandidos”, escreve Jorge Amado. O governo de
Getúlio Vargas e a ditadura militar constituem duas boas ilustrações do que se
entende por Estado Providência. No cruzamento dessas figuras – nacional estatista,
caudilho, jagunço e milenarista - não é difícil identificar a noção de
salvadores da pátria. Mudam as motivações ocultas e os meios, mas os horizontes
permanecem nebulosamente indistintos. Em geral, o salvador da pátria tende a
rejeitar as instituições, movimentos e organizações intermediárias,
apresentando-se às massas e à nação como a melhor ou a única alternativa. O
verniz e a retórica do populismo dão-lhe uma certa legitimidade ilícita, isto
é, para além da lei.
Se
o governo Bolsonaro, a exemplo de outros eleitos nos últimos anos, se encaixa
nesse quadro, então cabe a pergunta: até que ponto seu projeto de Reforma da
Previdência tem a coragem de cortar os privilégios da Casa Grande? A Reforma
tem instrumentos para uma correção social dos desequilíbrios? E se as respostas
forem afirmativas, o atual governo tem munição e forças suficientes para
aprová-la na Câmera e no Senado? Terá como superar alguns vícios e impasses que
vigoram há séculos no Estado Providência? Tais como: o corporativismo dos
servidores públicos, que sabe como mostrar unhas e dentes para defender os
próprios interesses; as manobras de representantes das forças armadas, cujo
projeto de reforma, não por acaso, ficou para ser apresentado mais tarde; a
prática da barganha politiqueira entre os poderes Executivo e Legislativo, o
chamado “balcão de negócios”, para sequer falar do poder Judiciário. A aposta
está sobre a mesa, ou melhor, no palco do Congresso Nacional. Mas as forças
ocultas e obtusas já começam a fazer ouvir suas vozes, por enquanto
sussurradas, depois veremos.
Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs – Rio
de Janeiro, 28 de fevereiro de 2019
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