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terça-feira, 17 de junho de 2008

MORTE E VIDA SEVERINA

Por: Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS

A Semana do Migrante de 2008 tem na defesa da vida seu eixo central. O tema da vida é também a espinha dorsal do Documento de Aparecida, o mesmo valendo para a Campanha da Fraternidade deste ano. Os debates em torno da vida têm sido freqüentes nos espaços eclesiais, em particular, e nas organizações e movimentos sociais, em geral. O tema se populariza, ganha ruas e praças, faz-se familiar seja em seminários e encontros, seja nas conversas do cotidiano.

Quando a preocupação pela vida emerge com tamanha evidência, é porque a morte ronda a porta. O receio desta faz redobrar os cuidados com aquela. Sintoma disso é o uso tão recorrente e insistente do prefixo grego bio (= vida). Se hoje tropeçamos com ele a cada notícia e a cada reportagem, a cada artigo e a cada entrevista, é sinal de que uma ameaça pesa sobre a vida em suas múltiplas formas e modalidades. Felizmente, a ameaça vem acompanhada de uma crescente tomada de consciência quanto aos riscos suspensos sobre a biodiversidade.

1. Nesta perspectiva, adquire tintas bem fortes o cenário da dialética perene entre vida e morte, retratado magistralmente por João Cabral de Melo Neto em Morte e vida Severina. Como sabemos, a trajetória do Severino é ambientada no nordeste brasileiro, estado de Pernambuco. O poema representa uma trágica metáfora sobre o viver e o morrer em terras historicamente assoladas pela seca, pela fome e pela cerca. Mas o próprio Severino, ele mesmo, não deixa de ser também uma metáfora dos milhões de outros Severinos, “iguais em tudo na vida / morremos de morte igual / mesma morte Severina / que é a morte de que se morre / de velhice antes dos trinta / de emboscada antes dos vinte / de fome um pouco por dia”.

E Severino representa, ainda, os africanos, asiáticos, latino-americanos, eslavos do leste europeu, refugiados e itinerantes de todos os quadrantes que hoje, igualmente aos milhões, se vêem descartados, excluídos, desterrados da própria terra em que nasceram. Órfãos sem pátria da economia globalizada. Forçados à retirada, expostos aos riscos da travessia e da fronteira, de olho num projeto que sempre parece escapar por entre os dedos.

2. Filho de terras inóspitas e hostis, Severino põe-se a caminho. Como o Fabiano de Vidas Secas, obra de Graciliano Ramos também ambientada no nordeste brasileiro, e como outros milhões de Severinos, transforma-se em retirante. Passa a vagar errante pelo agreste e pela caatinga. Mas, “desde que estou retirando / só a morte vejo ativa / só a morte deparei / e às vezes até festiva / só a morte tem encontrado / quem pensava encontrar a vida / e o pouco que não foi morte / foi vida severina”. A mesma sina enfrentam atualmente os imigrantes. Em busca de terras novas e velhos sonhos, marcham para uma existência mais promissora. Sós ou com a família, partem por terra, mar e ar, ao encalço da vida. Mas é a morte que os surpreende, a cada curva da estrada, nas águas do oceano, nas areias do deserto ou nas batidas policiais.

3. Chegando à Zona da Mata, o retirante se encanta com o verde das terras e com o correr livre das águas. Pois “bem me diziam que a terra / se faz mais branda e macia / quanto mais do litoral / a viagem se aproxima”. Mas uma outra morte o aguarda: não a morte pela seca e inanição, e sim a morte no eito da cana, causada pelo trabalho duro e o suor roubado: “essa cova em que está / com palmos medida / é a cota menor / que tiraste em vida / é de bom tamanho / nem largo nem fundo / é a parte que te cabe/ neste latifúndio / Não é cova grande / é cova medida / é a terra que querias / ver dividida / é uma cova grande / para teu pouco defunto / mas estarás mais ancho / que estavas no mundo / é uma cova grande ara tua carne pouca /mas a terra é dada / não se abre a boca”.

É a morte a conta gotas que vai minando as energias do imigrante clandestino em tantos porões sórdidos e em tantos países do planeta. A falta de documentos lhe nega o acesso ao trabalho, à saúde, à moradia, à escola, e até à roupa e ao alimento. Vê-se, com a família, privado dos direitos mais elementares. Sujeita-se por isso mesmo aos serviços mais sujos e pesados, mais perigosos e mal remunerados. Ainda por cima, tem se suportar calado o preconceito e a discriminação.

4. No Recife, porém, nos mangues do rio Capibaribe, Severino se depara com o nascimento de uma criança. Muitas de suas perguntas e inquietações ganham luz: “E não há melhor resposta / que o espetáculo da vida / vê-la desfiar seu fio / que também se chama vida /ver a fábrica que ela mesma / teimosamente se fabrica / vê-la brotar como há pouco / em nova vida explodida / mesmo quando é assim pequena / a explosão como a ocorrida / como a de há pouco franzina / mesmo quando é a explosão / de uma vida Severina”.

A metáfora é a da criança recém-nascida, que se ergue do mangue, como o sol no horizonte, para aquecer novas esperanças. Mas podemos tomar como metáfora a flor, o girassol, a espiga, da árvore ou o edifício – que teimosamente se levantam do chão em busca do ar livre, do céu azul e do calor. Também os sonhos dos imigrantes, depois de tanta luta e de tantas quedas, se levantam do chão, uma e outra vez, e abrem novas veredas. Com as raízes mergulhadas na terra, dela extraem a seiva que os sustenta, erguendo-se em seguida para um horizonte sempre renovado. Consciente ou inconscientemente, pelo simples ato de se moverem, rompem fronteiras. Movem a própria história, apontando o caminho de uma cidadania universal.

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