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terça-feira, 22 de setembro de 2020

GOVERNABILIDADE LÍQUIDA

Certo, a metáfora que utiliza o adjetivo “líquido” para evidenciar a ruptura do contrato social sobre o qual se ergue o edifício dos “tempos modernos” foi cunhada pelo sociólogo e filósofo polonês Zygmunt Bauman. Este último, efetivamente, intitula uma série de obras de sua autoria com um determinado substantivo (modernidade, medo, tempos...), seguido daquele adjetivo. Dessa maneira, a concepção de “modernidade líquida”, por exemplo, tem a ver com a falta de referências firmes e sólidas que ajudem a orientar os seres humanos, e suas principais formas de organização, no mundo contemporâneo. Disso resulta que, na sociedade atual, tanto as pessoas quanto as instituições estariam navegando num mar tempestuoso, como barcos à deriva, sem bússola e sem rumo do porto e do farol.

Mas também é certo que já em torno da metade do século XX, Ernest Bloch, filósofo alemão de origem judaica, escrevia em sua obra monumental sobre o que se poderia chamar de “continente ou arquipélago” da esperança: “O que é infinitamente pequeno, bem como a grandeza variável estavam completamente abaixo do horizonte da sociedade grega; o capitalismo, entretanto, fluidificou tanto aquilo que até então era considerado sólido e finito, que a quietude passou a ser pensada como movimento infinitamente pequeno e passaram a ser concebidos conceitos de grandeza não estáticos” (Cfr. BLOCH, Ernest, Il principio speranza”, Garzanti Editore, Milano, 1994, pág. 153). E nada menos que um século antes de Bloch, ou seja, há mais de 170 anos, os também filósofos e alemães K. Marx e F. Engels deixavam registrado na obra O manifesto comunista que “todas as relações fixas e congeladas, com seu rastro de preconceitos e opiniões, ancestrais e veneráveis, são varridas. Novas relações ficam obsoletas antes de se solidificarem. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Tudo o que é sagrado é profanado. Todos precisam encarar com serenidade sua posição social e relações recíprocas. ”

As duas citações, quando combinadas e confrontadas, descortinam uma involução cada vez mais acentuada na desconstrução deste edifício chamado modernidade. Se por uma parte, a metáfora de “sociedade líquida” nos é contemporânea, tentando às vezes exprimir uma das características fundamentais da pós-modernidade, por outra, persiste a sensação de que os laços e relações que a compõem há tempo estão se derretendo, se liquefazendo. Tal sensação, desenvolvida enquanto pensamento racional, sistemático e filosófico, acompanha a própria construção daquele edifício dos “tempos modernos” como legado de leis, contratos e conveniências – o qual, ao fim e ao cabo, desemboca na formação das democracias ocidentais.

Três exemplos desse acelerado processo de ruptura estrutural, seja do ponto de vista econômico e social seja do ponto de vista e político-cultural, são evidentes a olho nu. O primeiro vem da extrema precariedade das relações e dos direitos trabalhistas. Chegamos praticamente ao ponto em que os trabalhadores do mercado informal superam em número aqueles legalizados pelo mercado formal. E mesmo o emprego destes últimos sofre de abalos permanentes. Poder-se-ia afirmar que os empregos, tal como eram considerados pelas gerações passadas, foram abolidos e substituídos por serviços (ou bicos): temporários, vulneráveis e mal remunerados.

Em segundo lugar, decorrente dessa situação “líquida” quanto ao trabalho, sobram por todo lado pessoas desempregadas, subempregadas, desenraizadas e itinerantes. Trata-se de trabalhadores e trabalhadoras que poderíamos chamar de “fluídos”: sem pátria, sem rumo e quase sem endereço fixo. Não possuem qualquer tipo de referência sólida e tanto menos permanente. Não moram, acampam aqui e ali, movendo-se de acordo com os ventos e as migalhas do capital. Mais de 250 milhões de seres humanos, hoje, não residem no país em que nasceram. Isso sem contabilizar os migrantes internos e/ou temporários, os quais, segundo estimativas da ONU, beiram hoje em todo mundo a marca dos 45 milhões de pessoas. A imensa maioria deixa o lugar de nascimento devido à violência, às catástrofes climáticas, à guerra e à pobreza endêmica.

Por fim, cruzando os dois itens anteriores, chega-se a um estado de desigualdade econômica e social que cresce a velocidades assustadoras. Mesmo em tempos de crise e de pandemia (ou justamente por causa disso), o sistema de produção capitalista concentra, contemporaneamente, renda e riqueza de um lado, e exclusão social de outro. Estudos atualizados de Thomas Pikety, em nível internacional, e de Jessé de Souza, em nível nacional, põe a nu esse fosso abissal, e cada vez mais profundo, na distribuição geral dos frutos do trabalho coletivo. Flagrante claro desse desequilíbrio foi o número de pessoas que, no Brasil, procuram o auxílio emergencial de R$ 600,00 por ocasião da pandemia do novo coronavírus.

A esses três exemplos interligados – condições de trabalho precárias, aumento das migrações de massa e disparidade socioeconômica – não seria difícil acrescentar outros fatores que tornam o mundo e a sociedade “líquidos”. Derretem-se com a rapidez do gelo as relações, sejam elas de ordem interpessoal e familiar, comunitária ou social, política ou cultural; derrete-se a confiança entre as gerações, uma vez que uma tem pouco ou nada a dizer à próxima; derretem-se as boas tradições, condenadas juntamente com o “tradicionalismo”; derrete-se, enfim, a vontade e a capacidade de planejar o futuro, pois as carências e lacunas do presente, somadas à ansiedade como doença contemporânea, exigem respostas prontas e imediatas.

O fato é que quando as promessas e os compromissos se manifestam tão precários e efêmeros, também a governabilidade tende a escorregar em areia movediça e a derreter-se. Os governos Trump, nos Estados Unidos, e Bolsonaro, no Brasil, são testemunhas estridentes dessa fluidez mórbida e doentia. Dizer e desdizer, fazer e desfazer, prometer e descumprir – coisas que já eram comuns na prática política, tornaram-se o arroz-com-feijão diário. A exceção virou regra! Derreteram-se igualmente a ética e os critérios de um mandato sério e comprometido com o bem-estar do país. Rompeu-se a ponte entre a população como um todo e seu representante mais elevado, o qual passa a governar para a seita de seus seguidores fanáticos. E mais, tenta-se a todo custo fritar e derreter os canais e instrumentos, os órgãos e instituições, os mecanismos e ações de um regime democrático. Ataques e calúnias, impasses e entraves multiplicam-se a todo momento. Espinhos e pedras de tropeço atentam contra uma boa e sadia gestão.

E isso deixando de lado a temática ligada ao papel relevante e indispensável dos meios de comunicação social, da pesquisa e da ciência, como também da arte e dos artistas. Deixando de lado, ainda, a polêmica em torno das “fake news” e da Internet, em particular, e da revolução informática e cibernética, em geral, pois aí entraríamos em outro capítulo, o que requer uma reflexão bem mais ampla, específica e especializada.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM - Rio de Janeiro, 21 de setembro de 2020

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

POR QUE GRITA A MINHA GENTE?

Por que trabalha, sofre e luta a minha gente?

Por que geme, chora e se organiza a minha gente?

Por que canta e dança, luta e festeja a minha gente?

Por que minha gente insiste em viver e não apenas sobreviver?

Por que se levanta e grita a minha gente no dia 7 de setembro?

 

A minha gente grita porque é vítima de exclusão social,

A minha gente grita porque quer ser protagonista do tempo,

A minha gente grita porque precisa se fazer ver e ouvir,

A minha gente grita, na pandemia, pelas janelas e varandas de suas casas,

A minha gente grita, desde sempre, pela vida em primeiro lugar,

A minha gente grita no Dia da Pátria porque jamais esqueceu a cidadania!

 

A minha gente grita contra a pobreza, a miséria e a fome,

A minha gente grita contra o racismo, o preconceito e a discriminação,

A minha gente grita com a repressão, a exploração e o autoritarismo,

A minha gente grita contra todo tipo de tirania, ditadura e império,

A minha gente grita contra os atentados ao processo democrático!

 

A minha gente grita pela dignidade, a justiça e os direitos no trabalho,

A minha gente grita pela terra onde possa plantar, colher e se alimentar,

A minha gente grita pela terra onde erguer um teto para proteger a família,

A minha gente grita pela defesa do ar, das águas, do meio ambiente e da Terra,

A minha gente grita para deixar a arquibancada da história e entrar em campo,

A minha gente grita para ter vez e voz na participação da utopia do Reino!

 

A minha gente grita em solidariedade os infectados e afetados pela pandemia,

A minha gente grita pelos milhões de mortos e pelas famílias enlutadas,

A minha gente grita na voz das mulheres sujeitas à violência doméstica.

A minha gente grita na voz dos negros que há séculos “estão privados de respirar”,

A minha gente grita na voz dos povos indígenas e das comunidades quilombolas,

A minha gente grita na voz dos migrantes, das crianças e do povo de rua,

A minha gente grita na voz de todas as minorias “invisíveis e descartáveis”!

 

A minha gente grita do fundo dos porões abandonados e esquecidos,

A minha gente grita a partir dos longínquos grotões onde impera o descaso,

A minha gente grita desde as periferias relegadas a uma cidadania de segunda classe,

A minha gente grita no campo e na cidade por saúde, educação, luz e paz;

A minha gente grita aos céus e aos deuses pela unidade de todos os povos,

A minha gente grita pela construção conjunta de “nossa casa comum”!

 

A minha gente grita por um sistema econômico onde a vida tenha primazia sobre o lucro,

Onde a produção e a produtividade importem menos que a distribuição dos frutos,

Onde idosos e crianças representem nossa memória viva e nosso futuro solidário,

Onde todos, homens e mulheres, possam fazer parte do grande mutirão pela vida,

Onde a terra, o teto e o trabalho sejam direitos sagrados e assegurados!

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM

Rio de Janeiro, 2 de setembro de 2020

 

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Catástrofes agravam situação de migrantes e refugiados

 

Tomemos como ponto de partida duas notícias convergentes sobre a questão migratória em nível global. Primeiramente, de acordo com uma jornalista de um dos principais periódicos brasileiros, “a explosão que destruiu Beirute (...) atingiu em cheio os milhares de sírios que vivem na cidade. País com maior número de refugiados no mundo, proporcionalmente ao número de habitantes, o Líbano abriga cerca de 1 milhão de sírios, que representam um sexto da população do país. Dos mais de 200 mortos pela explosão no porto, no dia 4 de agosto, pelo menos 34 eram refugiados, segundo a agência da ONU para o tema (ACNUR). O número pode ser maior, já que ainda há sete desaparecidos e 124 ficaram feridos, 20 deles com ferimentos graves. Cerca de 200 mil refugiados vivem na capital libanesa” (Cfr. MANTOVANI, Flávia, portal da Folha de São Paulo, 13/08/ 2020).

A segunda notícia chega-nos do norte da África. “Em Zuara [Líbia] os migrantes ‘saudáveis’ são levados para a prisão. Os feridos são deixados ‘livres’, mas sem tratamento. A seleção é feita pelo estado de saúde. Os sobreviventes que ainda conseguem ficar de pé vão para a prisão. Aqueles cobertos de feridas e queimaduras, precisando de atenção e cuidados, são largados à própria sorte para apodrecer. Nas imagens que chegaram do sul de Trípoli pode ser vista, entre outros, um menino da Eritreia, único sobrevivente de um grupo de cerca de dez compatriotas, que conseguiu salvar das chamas o documento com o qual havia sido registrado na Líbia, na agência da ONU para refugiados. Com isso no bolso esperava obter na Europa a proteção que o direito internacional oferece a que, como ele, foge da violência e da perseguição. No início eram 85, agora 40 estão vivos. Vivos, mas não salvos” (Cfr. Reportagem de Nello Scavo, publicada pelo jornal Avvenire, em 22 de agosto de 2020, reproduzida pelo portal do IHU, 24/08/2020, com tradução de Luisa Rabolini).

Ambas as reportagens – vindas respectivamente do Líbano e da Líbia – centram o olhar sobre os migrantes e refugiados. De início e de imediato, podemos verificar que uma situação que já era extremamente precária e vulnerável, agrava-se à máxima potência seja com uma catástrofe inesperada, no caso do Líbano, seja com os efeitos pérfidos e perversos da pandemia, como no caso da Líbia. Mas os desastres de caráter natural ou humano poderiam ser repetidos às dezenas, bem como suas consequências nocivas para quem erra pelas estradas do êxodo, do exílio ou da diáspora. Os que se vêem repentinamente privados de um solo próprio, de um grupo familiar ou de uma terra que possa ser chamada de pátria, toda ameaça contém um duplo risco. Primeiro, o perigo de encontrar fechada a porta que dá acesso ao trabalho e ao sustento da família; segundo, o perigo de expatriação, sempre suspenso sobre a cabeça como uma guilhotina.

Em outras palavras, diante de uma explosão acidental (ou não?!...), como a de Beirute; em meio a uma pandemia que estende por todo o planeta seu rastro de mortos, feridos e enlutados; ou por ocasião de uma estiagem ou inundação – o imigrante tende a ser sempre o primeiro sacrificado. A ameaça será redobrada se o mesmo não estiver em dia com a documentação. No sentido de salvaguardar a população local, as autoridades, a imprensa e a própria opinião pública não hesitarão em se desfazer do “estranho e intruso”. Por toda a parte, a ideologia da segurança nacional representa o pano de fundo sobre o qual se debatem as leis migratórias. Disso resulta que o migrante ou refugiado serão irremediavelmente escolhidos como os bodes expiatórios do momento. E o será com maior razão quando se tratar de desordens econômicas, sociais e políticas. A situação de desemprego, subemprego e trabalho informal que deverá seguir-se à pandemia pesa duplamente sobre os estrangeiros de todo mundo, a menos que se trate de pessoas que já recriaram suas raízes nos países de destino, ou de técnicos, consultores e altos funcionários das empresas transnacionais. O contexto da pós-pandemia prevê caminhos áridos e íngremes para todos os cidadãos em condições vulneráveis, mas reserva dificuldades mais graves para as multidões de sem pátria que se movem pelo mundo afora.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro 1º de setembro de 2020

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Uma dor assim pungente não há de ser inutilmente


A frase do título foi extraída da composição “O bêbado e o equilibrista”, de Adir Blanc e João Bosco, música imortalizada na voz de Elis Regina. Quantas dores merecem essa designação de “pungente”! Algumas se fecham na angústia única e íntima de determinada pessoa. Outras se abatem sobre uma casa, limitando-se ao ambiente familiar. Outras, ainda, devastam uma região, um povo, uma cultura ou um país. A epidemia do novo coronavírus, ao contrário, ultrapassa todas as fronteiras, sem poupar ninguém. Deixa atrás de sua passagem um rastro sinistro de infectados, mortos e enlutados por todo o planeta. Com razão foi classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como pandemia. Palavra que se origina do grego, composta pelo prefixo “pan” + “demos”, respectivamente todo + povo. Disso decorre a afirmação da OMS, segundo a qual “pandemia é a disseminação global de uma doença nova, indicando que um vírus se espalhou por mais de um continente”.

Resultou que essa “dor assim pungente”, como um flagelo sem igual e com velocidade sem precedentes, ganhou uma abrangência tão globalizada quanto a economia, os transportes e as comunicações. Desde o começo da pandemia, aliás, o itinerário da contaminação já marcou diferentes epicentros: China, Europa, Estados Unidos, América Latina... O Brasil identificado, por sua vez, como epicentro deste último subcontinente. Em variados países, Brasil novamente incluído de forma irresponsável e catastrófica, não faltaram erros e equívocos nos diagnósticos e nas políticas de combate diante desse “inimigo invisível e silencioso”, por isso mesmo mais letal. Os próprios cientistas e pesquisadores, de modo especial os infectologistas passaram a buscar desesperadamente correr contra o tempo: num primeiro momento tentando entender o comportamento do que veio a ser chamado de Covid-19, depois utilizando todos os avanços da ciência e da tecnologia para a descoberta rápida de uma vacina. Contam-se às dezenas as que hoje estão em curso acelerado de pesquisa e produção.

Resta olhar para a segunda parte da frase tomada de empréstimo à canção de Elis Regina. Em outras palavras, de que maneira essa “dor assim pungente não há de ser inutilmente”? Além de seus efeitos perversos e consequências devastadoras, que pode ela nos trazer como aprendizado? Após meses de um convívio desgraçadamente miúdo e próximo, familiar e cotidiano com o coronavírus, é possível sim tirar dessa experiência dolorosa elementos místicos e espirituais que nos ajudam a enfrentar as adversidades e fortalecer nossa imunidade emocional e psicológica. Talvez o mais significativo seja a oportunidade de reencontro consigo mesmo, com o outro e com as dúvidas e perguntas relacionadas ao sentido da vida – coisas que nos levam à questão fundamental sobre Deus e sua presença entre nós.

O isolamento físico provocado pela quarentena por aqui, convenhamos, contou com o “jeitinho” brasileiro do drible Mas ele nos interroga profundamente sobre nosso modo de viver, de se relacionar, de ocupar o tempo, de consumir, e assim por diante. Muitos bens e urgências antes consideradas de primeira necessidade passaram a ser relativizados. Impulsos imediatos, desejos e instintos, de um lado, necessidades básicas e reais, de outro, sofreram inevitavelmente um processo de redimensionamento e ressignificação. Na medida em que as desigualdades sociais e econômicas, combinadas com as injustiças estruturais, foram viradas do avesso, os “migrantes, os excluídos, os invisíveis e os descartáveis” – termos com que o Papa Francisco chama a atenção sobre tantos trabalhadores do mercado informal – ganharam nova visibilidade.

De forma implícita ou explícita uma inquietude, também ela “pungente”, se instalou em nosso coração, ao mesmo tempo que uma reflexão profunda, inusitada e silenciosa tomava conta de nossa mente, de nossa alma e de nosso espírito. E trouxe uma redescoberta: sim, este tempo de sofrimento não foi em vão, não padecemos “inutilmente”. É possível hoje pensar num modo de vida alternativo: sóbrio, frugal, justo, fraterno, solidário, responsável e sustentável.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM, Rio de Janeiro, 17 de agosto de 2020

domingo, 16 de agosto de 2020

FENÔMENO MIGRATÓRIO NA BÍBLIA (Fragmentos de um esboço)

 

Os itens abaixo procuram garimpar e selecionar os textos bíblicos que, tanto no Antigo quanto no Novo testamento, fazem referência à questão das migrações. Estas podem ser voluntárias ou compulsórias (com forte destaque para as últimas). Enquanto na grande maioria desses textos a referência à mobilidade humana é bastante explicita, em alguns ela permanece velada. Funde-se com a situação de diferentes grupos ou circunstâncias análogas a essa vasta problemática dos movimentos humanos de massa. Não podemos esquecer, entretanto, que os escritos bíblicos, direta ou indiretamente, se originam no contexto cultural do Povo de Israel, povo historicamente marcado pelo fenômeno migratório, pelo desenraizamento e pelos deslocamentos frequentes e forçados – povo errante pelas estradas do êxodo, do deserto, do exílio e da diáspora.

 

1.      Vocação do patriarca Abraão (Gn 12, 1-9)

Abraão deve “deixar a sua terra e a casa de seu pai”

Responde ao projeto de Deus em vista da Terra Prometida

O binômio da promessa: terra e uma grande descendência

Abraão hospeda os mensageiros de Deus – Carvalho de Mambré (Gn 18, 1-10).

 

2.      Israel imigrante na terra do Egito (Livro do Gênesis, capítulos 37 – 50)

História de Jacó, José, seus irmãos e a emigração para o Egito

A migração tem raízes nas adversidades socioeconômicas:

A fome leva o povo a buscar alimento na terra do Egito (capítulo 41)

Mas José descobre que o Egito não é a Terra Prometida (capítulo 50)

 

3.      Processo de libertação da terra do Egito (Livro do Êxodo)

Libertação da escravidão sob o poder do Faraó (Ex 3, 7-10)

Paralelo com o chamado “credo histórico de Israel” (Dt 25, 5-10)

Moisés e a libertação: experiência fundante do Povo de Israel

O Deus vivo que “vê, ouve, conhece e desce” para libertar o povo

Caminha com ele pelas estradas do êxodo e do deserto, do exílio e da diáspora

 

4.      O cuidado com o estrangeiro: lembra-te que foste escravo no Egito

A experiência de imigrante e escravo: lição para a relação com o “outro”

O trinômio do Antigo Testamento: defesa do órfão, da viúva e do estrangeiro

O direito do pobre, dos excluídos e do estrangeiro (Ex 22, 17-27)

Deus protege aquele cuja vida é ameaçada (Lv 19, 9-14)

Justiça pronta e diária para com os trabalhadores (Dt 24, 14-15)

 

5.      Livros profético-sapienciais (“novelas” que transmitem um ensinamento)

Livro de Tobias: Identidade de Israel, especialmente em situação de diáspora

Livro de Rute: A luta do povo pelos seus direitos (tempo do exílio)

Livro de Jonas: A misericórdia de Deus não tem fronteiras (tempo do exílio)

Profeta Ezequiel (cap. 37): “os ossos secos” e a restauração do povo

Escritos que expressam a cultura de um povo desenraizado e a caminho.

 

6.      O mistério da encarnação do “verbo que se faz carne” (Lc 2, 1-14)

O decreto do imperador Augusto e a viagem para Belém

O Verbo se faz carne e arma sua tenda em meio à nossa história

Jesus se faz migrante no seio de Maria e no interior da família de Nazaré

“Maria deu à luz o seu primogênito, o enfaixou e o colocou na manjedoura”

Diz o evangelista: “não havia lugar para eles dentro de casa” (Lc 2, 7)

 

7.      Prepotência do rei Herodes: fuga para o Egito (Mt 2, 1-23)

O Menino Deus sofre a condição de refugiado e tem de sair do próprio país

Jesus-Maria-José ameaçados e fugitivos no Egito: ida e retorno

Deus se manifesta através dos sonhos e dos anjos, seus mensageiros

Uma família sábia e atenta aos “sinais de Deus na história”

 

8.      O chamado “programa de Jesus” no início do seu ministério (Lc 4, 14-21)

O “programa” é extraído do Livro do profeta Isaías (Is 61, 1-3)

Jesus na Galileia: “O Espírito do Senhor está sobre mim... “

Ele enviou-me “para anunciar a Boa Notícia aos pobres...”

“Para proclamar a libertação dos presos...”

“Para libertar os oprimidos e para proclamar um ano de graça do Senhor”!

Os “migrantes, refugiados e marítimos” entram na lista desses rostos

 

9.      O profeta itinerante de Nazaré (Teologia de John P. Meier)

“Jesus percorria todas as cidades e povoados...” (Mt 9, 35-38)

A compaixão diante das “multidões cansadas e abatidas”

Entre essas multidões podemos identificar os “diferentes rostos dos migrantes”

Paralelo com os rostos do Documento de Puebla (Doc. Puebla, n. 31-39)

 

10.  Pobre, marginalizado e migrante como critério de salvação

Pergunta o mestre da lei: O que fazer para ganhar a vida eterna, para salvar-se?

Parábola do Bom Samaritano: “Vá e faça a mesma coisa” (Lc 10, 25-37)

Parábola do Juízo Final: “eu era migrante e me acolheste”

Ou “eu era migrante e não me acolheste” (Mt 25, 31-46)

A salvação depende da atitude de cada um diante do pobre necessitado.

 

11.  Episódio de Emaús – “evangelho” da Pastoral dos Migrantes (Lc, 24, 13-35)

Na estrada de Emaús, o “forasteiro” caminha com os discípulos em fuga

Eles estavam tristes, abatidos e cabisbaixos devido à tragédia da cruz

O encontro, o convite e o reconhecimento na “benção e partilha do pão”

O retorno alegre, entusiasta e com “um novo ardor missionário”

Dois discípulos medrosos se convertem em dois missionários ardorosos

 

12.  Primeira Carta de Pedro (1Pr), escrita aos estrangeiros

Cfr. O texto da “apresentação” na Edição Pastoral da Bíblia

“Pedro, apóstolo de Jesus, aos que vivem dispersos como estrangeiros” (v 1,1)

Cristãos que tinham deixado suas raízes, os parentes e amigos...

Situação de isolamento, preconceito, discriminação e hostilidade...

A união entre os migrantes perseguidos é a “casa de Deus”;

União entre os migrantes como sinal de coesão e resistência.

 

13.  Testemunho do Apóstolo Paulo (Atos dos apóstolos e Cartas paulinas)

Transformação de “Saulo” em “Paulo”: de perseguidor a apóstolo

O encontro com o Ressuscitado no caminho de Damasco (Atos, capítulo 9)

Diálogo com os atenienses com seus deuses (Atos, capítulo 17)

O apóstolo das gentes: não há fronteiras para a Boa Nova do Evangelho

As comunidades urbanas de Paulo: encruzilhadas de viajantes

Sem orgulho e sem falsa humildade: “combati o bom combate” (2Tm 4, 6-8)

 

14.  A cidadania universal da Igreja e do Povo de Deus (Ef 2, 19-22)

“Vocês não são estrangeiros nem hóspedes, mas concidadãos...”

“Vocês pertencem ao edifício que tem como alicerce os apóstolos e profetas...”

“Vocês também são integrados nessa construção [do Reino de Deus]...”

O plano de salvação não tem fronteiras, está aberto a todos.

 

15.  O hino da encarnação e da humildade (Fl 2, 6-11)

Jesus “tinha a condição divina, mas não se apegou à sai igualdade com Deus”,

Ao contrário, “esvaziou-se a si mesmo, a sumindo a condição de servo”,

“Humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz”

Deus “desce” e se faz homem, para que nós possamos “subir” à condição divina

Humilitas” é o lema do carisma scalabriniano no trabalho com os migrantes.

 

16.  Um novo céu e uma nova terra (Ap 21, 1-8)

A Jerusalém celeste: remete à profecia de Isaías (Is 65, 17-25)

“Tenda de Deus com os homens: eles serão o seu povo e Deus-com-eles”

“Ele vai enxugar todo pranto e toda lágrima dos olhos deles”

“Nunca mais haverá morte, nem luto, nem grito, nem dor.

Conceitos de “Reino de Deus”, “Jerusalém Celeste”, “Terra sem males”

 

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM

Botafogo, Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2020

 

segunda-feira, 10 de agosto de 2020

Mais de 100 mil órfãos de pátria


Mais de 100 mil órfãos da pátria, precocemente ceifados pela Covid-19. Talvez seja razoável falar em órfãos do governo, ou melhor, órfãos do atual governo. Cem mil que não representam apenas uma cifra, e sim nomes, rostos, vidas, lutas e sonhos interrompidos, famílias enlutadas. Olhares e sorrisos que se apagaram. Certo, a memória de quem espalhou a boa semente sobre a face da terra jamais se extingue. Mas a separação é sempre dolorida e clama ao céu. E grita sobretudo quando tem consciência que milhares dessas mortes poderiam ser evitadas.

Como explicar tamanha tragédia? Por que a pandemia encontrou solo fértil no Brasil? E por que a sensação de que o flagelo poderia, sim, ser menor? Por que tanto sofrimento e tantas lágrimas engolidas e silenciadas, de modo particular entre os extratos mais pobres da sociedade? O que faltou, ou então o que sobrou por que do governo? Sobrou negligência, indiferença, e mesmo deboche e escárnio; faltou um gesto, uma palavra, um plano nacional de combate a esse inimigo invisível e, por isso mesmo, mais contagioso e letal.

Sobraram erros e discórdias, faltaram sentimentos primários e primordiais. Aqueles que, em todo mundo, entrelaçam corações e almas, mentes e espíritos. Os equívocos tiveram início com a falaciosa contraposição entre saúde e economia. Ambas andam de mãos dadas e não podem ser separadas. Um país saudável robustece a economia, da mesma forma que uma economia responsável revigora a existência e a confiança. Mas o desleixo não parou por aí! O Brasil tem sido um dos países que menos testam, o que equivale a um controle menor sobre o contágio e os óbitos. E mesmo com tão poucos testes, o país ultrapassou a marca de 3 milhões de infectados, juntamente com os mais de 100 mil mortos. Órfãos de um governo ausente, os quais, por sua vez, deixaram milhares de famílias igualmente órfãs. “E daí!”...

Certamente a história haverá de fazer o inventário completo e julgar seja o mutismo ostensivo e desrespeitoso do supremo mandatário, seja o barulho frequente e estridente por ele emitido no palácio do Planalto. Barulho feito de ruídos que repercutiram perfidamente em termos mundiais. Ruído raivoso e difamatório das fake news, fabricadas e divulgadas pelo “gabinete do ódio” e com dinheiro público; espetáculo bizarro e insistente sobre a famigerada cloroquina, remédio nunca recomendado abertamente pela ciência médica; estardalhaço imperdoável no Ministério da Saúde onde, em plena evolução da pandemia, nada menos do que dois ministros foram sumariamente dispensados, pelo simples fato der não concordarem com a receita apresentada pelo capitão como panaceia a todos os males.

Os historiadores, além disso, jamais poderão poupar as repetidas insubordinações do presidente Bolsonaro, no sentido de desrespeitar o uso da máscara e de provocar seguidas aglomerações no “cercadinho do Planalto”. Isso para sequer falar de sua cobertura aos atentados contra o poder Judiciário, contra o Congresso Nacional e contra as instituições e mecanismos democráticos em seu conjunto, como também de seus obsessivos ataques aos meios de comunicação social, aos cientistas, artistas, professores, etc. E que dizer da tentativa de esconder os números referentes aos infectados e vítimas fatais do novo coronavírus!

Menos ainda tais historiadores fecharão os olhos a um governo centrado não tanto nas urgências e necessidades básicas da nação brasileira, mas na defesa do grupo familiar e da seita de amigos e fanáticos. Para finalizar, vale uma pergunta nada cômoda: por que os cofres públicos (numa palavra, os cidadãos que pagam seus impostos devidamente) devem arcar com os altos custos de manutenção de um presidente, de um senador ou de um deputado cujos mandatos servem mais para a autodefesa diante dos procuradores e tribunais, ou para garantir a própria impunidade, do que para o bem-estar da população?

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 10 de agosto de 2020

quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Pandemia como ponto de chegada e ponto de partida

Do ponto de vista da relação entre os seres humanos, de um lado, com a natureza e o meio ambiente, de outro, não será exagero considerar a pandemia do Covid-19 como um ponto de chegada e, ao mesmo tempo, um ponto de partida. Ponto de chegada em referência a um modo de pensar que considera o planeta terra como objeto rico e passivo de exploração, do qual, aparentemente, poder-se-ia extrair bens ilimitados. O pensamento do filósofo francês René Descartes, com a distinção clara e taxativa entre o sujeito pensante e os objetos ou coisas, teria contribuído poderosamente para essa visão dualista entre humanidade e natureza. O processo evolutivo marcado pelos avanços da ciência e do iluminismo, que conduz o Ocidente aos “tempos modernos”, é fortemente marcado por essa premissa. Depois, com o surgimento e o progresso da tecnologia, tal evolução ganha velocidade sem precedentes, culminando na Revolução Industrial. Com a final do século XX e início do XXI, chegamos à modernidade tardia (Anthony Giddens) ou pós-modernidade (François Lyotard).

Nas últimas décadas do século passado e as primeiras deste, porém, movimentos ambientalistas e estudiosos de várias áreas seguem insistindo na redescoberta que nosso planeta azul, longe de ser um mero objeto dependente e passivo diante da ação humana, representa em lugar disso um organismo vivo. Organismo vivo que, como toda planta, todo animal e todo ser humano, sofre constantemente um processo de metabolismo que o renova e transforma. Todo ser vivo, de fato, incorpora novos ingredientes, metaboliza e integra aquilo que o faz crescer e desenvolver-se, ao mesmo tempo que rejeita e expele o que lhe é nocivo. Até mesmo as águas, o oxigênio, o ar, a luz, e inclusive a matéria inorgânica são protagonistas desse processo de seleção permanente. “Na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma”, dizia Lavoisier.

Evidente que essa redescoberta da Terra como organismo vivo precede a tragédia da pandemia que hoje assola o mundo. Mas essa, em suas exigências e consequências, é também um ponto de partida que aguça nos seres humanos uma outra relação com o meio ambiente. Aprofunda-se a consciência de que o usufruto indiscriminado dos recursos naturais, bem como a exploração ao extremo da força humana de trabalho, representa um caminho equivocado e irreversível, um beco sem saída. O uso incorreto dos bens da natureza e o abuso nas relações trabalhistas, cedo ou tarde, confronta-se com barreiras intransponíveis. Enquanto alguns bens naturais podem ser recicláveis, outros são limitados. Daí a consciência de uma vida mais simples, sóbria, frugal e responsável. O organismo terrestre não se recria como fonte vital com a velocidade com a qual a econômica globalizada busca insaciavelmente lucro e acumulação do capital.

Mas não é só isso! Na exata medida em que olhamos para o planeta Terra não como um objeto a ser manipulado em função de interesses imediatos, e sim como um organismo vivo e vital, ele se torna um outro sujeito com o qual devemos nos relacionar. Relação nova e interativa, onde a natureza e o meio ambiente, juntamente com os seres humanos, passam a agir como verdadeiros protagonistas da biodiversidade. Semelhante modo de relacionamento nos obriga, por nossa vez, a olhar diferentemente para esse “outro sujeito”, respeitando sua alteridade única e irrepetível, como também a colocarmo-nos em seu lugar, com a consciência de suas fragilidades e de suas contribuições, de sua necessidade perene de renovar-se enquanto organismo vivo, para seguir oferecendo aos seres humanos o “leite” indispensável da sobrevivência.

Em conclusão, damo-nos conta que destruir as florestas, contaminar o ar e as águas, devastar o meio ambiente e desertificar o solo é impedir a reprodução da vida. E mais, é tornar impossível a continuidade não só de nossas futuras gerações, mas também outras espécies de fauna e flora, cuja ausência nos empobrece a todos. Nessa perspectiva, o novo coronavírus funciona como um balde de água fria no consumismo frenético no “viver bem”. Ou então uma espécie de ponto de partida em direção ao horizonte do “bem viver” justo, inclusivo, responsável e sustentável.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, cs, vice-presidente do SPM – Rio de Janeiro, 6 de agosto de 2020